quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Um mercado de Norte a Sul

Como prometido ontem, publico aqui a reportagem sobre o Mercado Público de Florianópolis:

"Um mercado de norte a sul
Os comerciantes do Mercado Público de Florianópolis ficaram alvoroçados ao ver o automóvel Gordini passando, aparentemente sem motorista. Dentro, na verdade, estava o jovem Zezinho, agachado. Zezinho vinha da Praia do Vai Quem Quer. Como em seus primeiros anos de vida fora acometido de paralisia infantil e, naquela época, não havia carros adaptados, ele teve que ser criativo: cortou um taco de sinuca e usou como sapata, amarrando à perna esquerda. Só assim podia freiar.

Acontece que naquele dia a sapata escapou, e o único jeito de parar o carro era usando as mãos. Para alcançar o pedal, ele se abaixou. Nesse momento, o carro passava bem em frente ao Mercado Público. Os comerciantes não haviam visto a cena anterior e começaram a gritar:

- Viste lá? Tem um carro andando sozinho!

Como não parar?
Talvez já tenha acontecido com você, caso seja uma das 240 mil pessoas que circulam diariamente pelo espaço que engloba o terminal de ônibus, o camelódromo de Florianópolis, o Mercado Público, o prédio da Alfândega e as pequenas feiras ao redor. Como não parar no Mercado? Como resistir ao convite do sujeito sentado na esquina da rua Paulo Fontes, há horas bebendo chope no Bar do Alvin, e que pergunta aos conhecidos que avista:

- Tás indo pra onde?

Você pode responder que marcou de encontrar com alguém. E marcou mesmo. Mas é difícil resistir. Dali meia hora, a mulher e a filha pequena encontrarão você por acaso. Você estará bebendo seu chope, esquecido do tempo, curtindo a brisa, sentindo o cheiro de mar e saboreando um omelete de camarão, bolinho de bacalhau, casquinha de siri ou isca de peixe. É gostoso ficar ali, observando o movimento dos pedestres. Uma gaivota solitária quase enlouquece rodeando as caixas de peixe fresco recém chegadas na Ala Sul. A ave conta com a piedade dos funcionários da peixaria Silva, que lhe dão pequenas cortesias.

Edemésio Biomiro da Silva, 58 anos, 40 deles vividos no Mercado, é o dono da Peixaria Silva. Ele mostra no chão até onde a água vinha, antes da construção do aterro onde está o terminal de ônibus, ao sul do Mercado Público.

Se você entrar na Ala Sul, vai encontrar as peixarias, que vendem enxova, tainha, curvina, gordinho, camarão nativo, ostra e berbigão. Também há uma loja vendendo caldo de cana (o copo gigante custa R$ 2,00). É possível comprar ainda produtos de pesca e artesenato ou mesmo comer no badalado Box 32, reduto das celebridades que visitam a ilha (segundo o proprietário Roberto Barreiros, 53 anos, 25 de Mercado, o box é considerado uma das três principais atrações turísticas do estado, ao lado do Costão do Santinho e do Beto Carrero World). Pode comprar erva-mate, porque há muitos gaúchos em Santa Catarina. Ou pode tomar um chope no Bar do Alvin, que tem uma história curiosa. O dono Alvin Nelson Fernandes da Luz, 67 anos, há 48 no Mercado, herdou o ponto do pai. No início, o lugar era uma fiambreria. Como era frequente o pedido dos fregueses para que vendesse cerveja e se transformasse num local para o "happy hour", acabou virando um bar. Ou um "boteco melhorado", como descreve Alvin.

Separando a Ala Sul da Ala Norte há um vão central, um pátio que é quase uma rua que atravessa o Mercado. E, pelo menos no nome, é uma rua mesmo. A Rua Francisco Tolentino abriga desde restaurantes tradicionais - no Bar Goiano, fundado em 1963, é possível comer sequência de camarão, tainha grelhada, peixe frito e peixe com pirão - a lojas de tecidos e de panelas. Esse também é um espaço de convivência. Sábados à tarde há música ao vivo e, antigamente, havia até mesmo artesãs fazendo rendas de bilro. Hoje há apenas duas senhoras fazendo essa arte tradicional da cidade, apenas em dias de semana, no prédio da Alfândega, atrás do Mercado.

A Ala Norte, que é voltada para a Rua Conselheiro Mafra, abriga primordialmente lojas de sapatos e de confecções e aviamentos, além de alguns bares.

Os pólos de uma cidade subtropical
Florianópolis é uma cidade feita de opostos. O principal deles: ter nascido no continente ou, ao contrário, ser um Manézinho da Ilha.

O Mercado Público também é feito de oposições, como a separação em duas alas: a Norte e ao Sul. E a própria história do Mercado começou com dois lados em disputa. Ou melhor, a pré-história do Mercado começou assim. Pois foi por causa de uma discussão sobre onde a primeira edificação seria construída que surgiram os dois primeiros partidos políticos do estado. No final do século 18 e início do século 19, o comércio na Praça XV era feito por meio de barraquinhas e esteiras esticadas no chão, tudo em péssimas condições sanitárias. A sociedade se dividiu para decidir que solução tomar. De um lado, os barraquistas, ou seja, os comerciários, também conhecidos como cristãos, e que queriam continuar comercializando no local; do outro, os opositores, os judeus, que queriam que as barracas fossem transferidas de lugar. Venceram os barraquistas.

Esse antecessor do atual Mercado Público foi erguido em 1851, mas foi demolido quatro décadas depois. No seu lugar, foi erguido a Ala Norte do prédio atual, no ano de 1898. Apenas em 1931 foi construída a Ala Sul.

Hoje o prédio tem características ecléticas, com toques de art-decô. Foi construído um vão ligando as duas alas. Também há quatro torreões nos cantos. O mar, que antes fazia da Ala Norte uma praia e, com o novo aterro, passou a encostar na Ala Sul, hoje ficou ainda mais distante. Pois um novo aterro não apenas distanciou o mar, mas a construção do terminal de ônibus na década de 1970 tirou também a vista do litoral.

Em 1984, tanto o prédio do Mercado quanto o da Alfândega foram tombados por decreto municipal.

Em 2005, um incêndio destruiu toda a Ala Norte, que foi posteriormente reconstruída. Ninguém ficou ferido. Nem mesmo um certo gato, que se salvou do fogo escondendo-se dentro de um freezer no Bar Goiano.

Trabalhando em casa
Charlon Ferreira, 51 anos, 41 de Mercado, é o proprietário do bar Goiano. Charlon é filho de Saint-Clair Inácio Ferreira, o tal "Goiano". Quando tinha 20 e poucos anos, Saint-Clair já era um profissonal de confeitaria e trabalhava num estabelecimento do ramo em Florianópolis. Havia começado despretensiosamente, mas logo chegou ao status de sócio. Ambicioso, ele quis ter o próprio negócio. Os poucos recursos, porém, só permitiram a compra de um ponto no Mercado Público, na época frequentado por pessoas de baixa renda. Ali começou o Bar Goiano, em 1961, que veio a se tornar uma tradição da cidade.

O filho Charlon entrou cedo para a história do bar. O pai às vezes ia caçar e o menino ficava trabalhando no caixa, com o auxílio de outros funcionários. Em 1979, Saint-Clair teve problema de saúde e o filho, agora adulto, assumiu os negócios. Hoje é Filippe, 26 anos, filho de Charlon e neto de Saint-Clarir, quem se prepara para assumir os negócios da família.

Charlon lembra de muitas histórias. Foi ele quem trancou sem querer o gato no freezer, ao entrar apressado na construção em chamas. Viu a porta do freezer aberta e, sem saber que o gato se escondera lá, fechou. Dias depois, quando os bombeiros autorizaram a entrada no prédio, foi Charlon quem abriu o freezer e deu de cara com o gato. Chamou os jornalistas que estavam por ali para fotografar a liberação do prédio pelos bombeiros após o incêndio. No dia seguinte, a matéria saiu nos jornais.

Há outras histórias. Em 1961, o cantor João Gilberto esteve em Florianópolis para fazer um show. Charlon conta que ele interrompeu a apresentação, porque o público não ficava quieto. Irritado, saiu de lá e, após perambular pela cidade, foi parar no Bar Goiano, às 6 da manhã. Pegou o violão e começou a tocar. Tanto que esqueceu de ir embora; só se deu conta às 11 da manhã.

Outra história que Charlon lembra tem ar de comédia. Diz que certa feita o Mercado tinha um administrador muito brabo, rígido, que ficava furioso por pouca coisa. O escritório da administração ficava na frente do Mercado. Nos fundos, aportou um homem pretendendo vender uma vaca ao administrador. Os funcionários do Mercado, querendo fazer troça, recomendaram ao homem que, em vez de deixar a vaca presa nos fundos, que ele a levasse junto com ele pelo vão central até chegar ao escritório. Assim ele fez. No caminho, alguns funcionários começaram a jogar papéis e fazer barulho, provocando o bicho. A vaca ficou nervosa. O resultado foi um rastro de sujeira, por todo o vão central, até o escritório da administração. O episódio rendeu muitas gargalhadas, além de algumas demissões.

Quase em frente ao Goiano, provavelmente por onde a vaca deve ter passado, um estabelecimento ostenta a seguinta placa: "Bazar Mansur - alumínio, inox, ferro, esmaltados - desde 1947". Essa loja de panelas é a locatária mais antiga do Mercado Público. No balcão, quem atende hoje é Marlene Mansur de Moraes, de 70 anos. Cirurgiã-dentista aposentada, ela assumiu o negócio há dez anos, após a morte do pai, Gedeão Mansur, que trabalhou 53 anos no Mercado.

A família Mansur chegou ao Brasil em 1905, vindos do Líbano. Lá eles trabalhavam com plantação de oliva e rebanho. Gedeão, que nasceu já no Brasil, começou trabalhando como mascate, vendendo tecidos e armarinhos para lojas. Em 1947, comprou o ponto no Mercado Público, usando bônus de guerra para saldar parte do pagamento. A loja Mansur vendia inicialmente armarinhos e sedas. Quando chovia, porém, as gotas caiam do teto e estragavam os tecidos. Foi por isso que Gedeão começou a vender louças. Ele logo viu, porém, que não levava jeito para a coisa. Então, numa viagem a São Paulo, conheceu o alumínio, um material novo, que teve sucesso imediato.

O Bar Goiano e a Loja Mansur são exemplos de um fenômeno comum no Mercado Público de Florianópolis. Os negócios tendem a atravessar gerações, permanecendo nas mãos da mesma família. Um caso curioso é o da Calçados Leal, uma sapataria que tem duas loja na Ala Norte. O ponto é comandado por Leoberto Roberto, caçula de uma família de 17 filhos. Roberto João Leal, o pai da família, antigamente tinha um tabuleiro de frutas no Mercado.

Outro filho da família Leal chama-se José Roberto. José se criou por lá, desde os 9 anos. No início, os irmãos o levavam de carro de mão. O menino cresceu, aprendeu a se virar sozinho. Quando adulto, entrou para o Mercado como camelô, comercializando naftalina e pentes flamengo e cata-piolho. Acompanhou portanto de perto as discussões da década de 1960 - uma espécie de flash back da história anterior do Mercado - sobre o que fazer com os novos camelôs que se alojavam no entorno. Mesmo após o período de ausência, em que foi trabalhar num banco, José voltou ao principal cenário da sua vida com toda força: ele se tornou administrador do camelódromo. Uma de suas maiores lutas foi em prol da acessibilidade dos portadores de necessidades especiais ao Mercado. Atualmente, José Roberto Leal administra o Mercado Público de Florianópolis.

Olhando para frente e vendo o passado
José Roberto Leal, hoje com 58 anos, ri um bom bocado ao lembrar a história do carro sem motorista. E são realmente muitas histórias para recordar.

- Eu via chegar a lancha aqui onde eu estou sentado - conta Zezinho, sentado na sua cadeira na sala da Administração do Mercado. Ele lembra dos tempos em que a água invadia o local onde hoje se encontra o camelódromo.

Zezinho de alguma forma conseguiu parar o carro naquele dia, com o auxílio das mãos. Se alguém achava que não havia ninguém lá dentro, se enganou. Zezinho estava lá e está aí até hoje. A história dele é como a história do Mercado Público: não se fez senão enfrentando muitas dificuldades e obstáculos. E boas lembranças.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O Mercado Público e os orixás do tempo

Acabou de me chegar pelo correio um exemplar deste livro aqui:


Trata-se de um projeto da editora Autêntica, de Belo Horizonte, que tive a honra de participar no fim do ano passado. O livro é uma junção de fotos de Cyro Soares e textos de jornalistas diversos sobre os mais importantes mercados públicos do Brasil. Eu fui escalado para apurar e escrever sobre o Mercado Público de Porto Alegre e também o de Florianópolis.

Outras informações sobre o livro, você tem aqui.

Abaixo, segue o texto sobre o mercado gaúcho. Amanhã posto o sobre o de Florianópolis.

***

"O Mercado Público de Porto Alegre e os orixás do tempo

Então passaram os tempos,
entre fogos, chuvas e ventos,
permanece de pé o Mercado Central
Assistindo ao progresso chegar,
ao velho passar e ao jovem envelhecer
És o prédio original e folclórico
És patrimônio histórico do Centro da Capital
Para quem te conheceu és motivo de saudade
Ficarás de pé para sempre monumento
da nossa cidade
[Paulo Naval]

O vigia observa atentamente as pessoas cirularem pelos corredores. Do alto do caixote, colocado bem no centro do Mercado Público Central de Porto Alegre, ele enxerga as quatro entradas do prédio. Cada uma das entradas é protegida por uma flora - lojas que vendem produtos de religiões afro-brasileiras.

À sua frente, a entrada leste do prédio permite ver a Praça Parobé, um aterro onde está localizado o mais importante terminal de ônibus urbanos de Porto Alegre. Antigamente, quando as águas do Guaíba avançavam pelas laterais do Mercado, ali ficava a Doca das Frutas, onde diariamente aportavam embarcações trazendo mercadorias.

Se o vigia olha para a direita, enxerga a entrada sul. É possível ver o Largo Glênio Peres, tradicional ponto de passagem e encontros da cidade. Antigamente, o bonde circulava por ali, passando bem em frente ao Chalé da Praça XV.

Atrás do vigia, a entrada oeste desemboca na Rua Siqueira Campos, que separa a Prefeitura Nova e o Paço Municipal, também conhecido como Prefeitura Velha. Ali ficava há muito tempo a Doca do Carvão, por onde desembarcavam mercadorias, antes da existência do aterro.

Olhando para a esquerda, o vigia vê a entrada norte, que permitiria uma vista única do Guaíba, se não fosse o muro da estação do trem metropolitano.

Sobre a cabeça do vigia, pende do teto uma peça cúbica, com inscrições comemorando os 140 anos de existência do Mercado Público Central de Porto Alegre, completados no dia 3 de outubro de 2009. Também há quatro monitores de plasma veiculando informações sobre pessoas e dados históricos do Mercado. Da posição em que o vigia se encontra, também é possível enxergar os restaurantes do mezanino e os estabelecimentos do segundo andar.

Mas há coisas no Mercado Público que nem o vigia pode ver, como a sala de descanso dos funcionários, o auditório de 80 lugares, o sistema de gás canalisado cuja central fica no porto, o sistema de refrigeração e o túnel subterrâno que liga o Mercado à Prefeitura Velha (alguns historiadores acreditam que pode ter sido um poço onde se colocavam os escravos). Ainda assim, ele é o funcionário que trabalha tendo a melhor vista do prédio.

Um grupo de pessoas, provavelmente turistas, aproxima-se. Eles param quase ao pé do vigia. Dois guias do Memorial do Mercado apontam para o chão, mostrando ao grupo uma pedra que marca o local exato em que se encontra o centro do prédio. O vigia também olha. Um dos guias fala:

- Neste local, reza a lenda que os escravos que trabalhavam na construção do prédio enterraram o Bará... Sabem o que é isso?

O vigia também olha, distraído de seu trabalho. De repente, junta-se ao grupo um homem vestido de branco da cabeça aos pés. Ele diz:

- Eu sei, eu posso contar.

Um mercado de histórias
O Mercado Público de Porto Alegre recebe diariamente 120 mil visitantes (o número chega a 200 mil durante o Natal e a Feira do Peixe, na Semana Santa). É frequentado pelo freguês anônimo e pelos famosos, sejam eles personalidades locais ou turistas das mais variadas origens. É frequentado pelo famoso travestido de anônimo e pelo anônimo que, de tanto vir, acaba se tornando famoso.

Ali se pode encontrar tudo o que diz respeito à erva-mate e ao secular hábito dos gaúchos de tomar chimarrão. Tem gente que vai ao mercado comprar peixe. Outros voltam para casa com alimentos de diversas partes do mundo. Dá para comprar fruta, também, ou carne. Pode comer sorvete. Comprar tecidos ou livros. Tomar um chope ou degustar um bolinho de bacalhau.

Darci de Souza Oliveira, que atende como Paulo "Naval", já viu gente de tudo que é tipo. Aos 73 anos, 52 deles trabalhando no Mercado, Paulo é o garçom mais antigo em atividade. Ele veio de Santiago, RS, a terra dos poetas, e não é à toa que ficou conhecido como "o poeta do Mercado". É dele, por exemplo, o poema "Carreteiro de Charque, tchê", que consta no cardápio:

Meu velho arroz carreiteiro
Feito em beira de estrada
Tem gosto de manjerona
E cheiro de madrugada
Quando começo a te comer
Parece que estou beijando
A minha china amada
E com o feijão mexido
Que faz o acompanhamento
Eu sinto estar servido
No prazer deste momento!

Às 9h da manhã do dia 8 de janeiro de 1957, Darci chegou ao Bar Naval e se candidatou para a vaga de trabalho com o sr. Antonio Lopes Branco, então proprietário. Começou no outro dia. O antigo patrão "já subiu", como Paulo mesmo diz, mas o garçom seguiu trabalhando, atendendo a diferentes clientes e patrões.

Na parede do Naval, há fotos de pessoas ilustres de várias gerações que já frequentaram o bar: os cantores Nélson Gonçalves, Vicente Celestino, Carmen Miranda e Elis Regina (esta última vinha desde criança, quando participava dos programas de calouros); o cantor argentino de tango Carlos Gardel; os políticos Ciro Gomes e Artur Bernardes; e o músico Thedy Corrêa, que inclusive fez no Bar Naval a foto que virou capa do cd "Loopcínio", em homenagem à Lupcínio Rodrigues, um ícone da canção popular brasileira.

Lupcínio, aliás, era o grande frequentador do Bar Naval. Paulo conta que ele chegava de manhã, em companhia do intérprete Jo. Sentava na mesa bem ao lado da porta que dá para o Paço Municipal. Munido de uma cachacinha pura e uma caixa de fósforos, Lupcínio escrevia letras de música. Mas com que papel? Naquela época, papel era coisa escassa. Então Lupcínio chamava o garçom, e mandava:

- Meu camaradinha, o senhor pode me arranjar um pedaço de papel aí? E um toquinho de lápis, que eu perdi o meu.

Paulo Naval arranjava. Apontador, inclusive. E, quando o dono do bar cansou de fornecer papel de graça - "ele que traga papel da casa da mãe dele", disse - Paulo começou a juntar papéis de pacote de cigarro.

Outra história se passou "numa bela tarde de verão", como lembra o garçom. Entrou no bar um senhor de terno preto e chapéu de copa alta e abas curtas. Sentou na companhia de mais três homens. Pediu um chope, com bolinho de bacalhau, então outro chope. Depois saiu.

Só mais tarde, Paulo Naval ficou sabendo que aquele era o General Flores da Cunha, e que dois dos homens eram capangas. Um deles, inclusive, atirador.

No Bar Naval, o pastel de camarão, o pastel de queijo e o pastel de bacalhau custam R$ 3,50 cada.

O segundo e terceiro garçons mais antigos do Mercado são, respectivamente, Jorge Alberto Bueno de Oliveira, o "Vovô", de 69 anos, 42 atendendo no restaurante Gambrinus; e José Carlos Lopes Tavares, o "Zézinho", 62 anos, 40 de Gambrinus. O restaurante centenário fica ao lado do Bar Naval, atendendo porém a um público com mais recursos financeiros. Antigamente, havia um outro bar, o Treviso, que durante décadas foi um ponto de encontro tradicional da boemia porto-alegrense. Reza a lenda que o bar ficava aberto 24 horas e que, em certa ocasião em que precisou ser fechado, ninguém encontrava o cadeado.

O restaurante, porém, um dia fechou definitivamente as portas. Na comparação de Zézinho, o Treviso "era os Beatles" na época, e o "Gambrinus" era os Rolling Stones, que inclusive "estão aí até hoje".

Não só o Gambrinus sobreviveu ao tempo, como o próprio Vovô. Ele conta que quase morreu no colo materno na enchente de 1941. A mãe lhe dava mamadeira no segundo andar do sobrado em que moravam, o que foi a sorte. As águas inundaram o primeiro andar inteiro.

A história das histórias
O Mercado Público Central de Porto Alegre foi inaugurado em 1869. Obra do engenheiro Friederich Heydtmann, o prédio tem estilo neoclássico. Após as diversas reformas, porém, a construção assumiu características ecléticas.

Inicialmente, o Mercado possuia apenas um andar, com torreões nos cantos. Havia um jardim no pátio, que gradualmente foi dando lugar às bancas de madeira. Em 1912, um incêndio destruiu essas bancas. Como o prédio da Prefeitura agora se erguia majestoso ao lado, pensou-se que seria conveniente construir um segundo andar. A inauguração foi no mesmo ano. A parte de cima (que ficava visualmente separada da parte de baixo em função do telhado das bancas) abrigava, em geral, serviços administrativos.

No dia 9 de maio de 1941, uma enchente deixou o primeiro andar do Mercado debaixo da água. Uma placa foi colocada na entrada sul, para marcar até que altura a água chegou.

Houve dois outros incêndios, de proporções menores, em 1976 e 1979. O prédio também passou por ameaças de demolição. Em 1979, porém, o Mercado foi tombado pelo Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre.

Na década de 1980, uma reforma mudou o piso interno e aperfeiçoou as instalações elétricas. Foi só na década de 1990, porém, que o prédio passou por uma restauração. Além da instalação de elevadores e escada rolante, foram construídos três mezaninos, que hoje abrigam restaurantes. A intenção foi revitalizar o segundo andar, que ficava escondido dos olhos dos frequentadores. Em 1997, o Mercado Público reabriu totalmente as portas, na configuração em que se encontra até hoje. O projeto de restauração ganhou o prêmio da Bienal de Arquitetura de São Paulo.

No final da década de 1990 e início dos anos 2000, aconteceu uma reforma administrativa, que visou atualizar os contratos de todos os permissionários. Hoje o Mercado é sustentado por um fundo próprio, advindo do aluguel das bancas, valor que é investido exclusivamente no prédio.

A administração do Mercado organiza eventos culturais, como a Feira de Gibis e a Feira de Vinil. O Jornal do Mercado, publicação mensal, organiza torneios de futebol e kart voltados para os funcionários, além do concurso de fotografias, aberto ao público em geral.

A gestão do Mercado Público Central de Porto Alegre é modelo para outros mercados. Equipes de Pelotas, Rio Grande, Salvador, Juiz de Fora, Florianópolis, São Paulo e Montevidéo já estiveram na cidade para aprender com a experiência da capital gaúcha.

Em 1999, foi criado o Memorial do Mercado, cujo objetivo é preservar a memória do lugar e das pessoas que passaram por ele. Uma das ações é o Projeto Vozes, que proporciona visitas ao Mercado guiadas por um grupo de teatro, fazendo educação patrimonial através da arte.

Mais histórias
Quando Paulo Autran vinha se apresentar no Theatro São Pedro, ele passava na Banca 43 para comprar uísque Johnny Walker original. Se Cláudio Klein, 58 anos (há 44 no Mercado), um dos proprietários da banca, não tinha o uísque para vender, comprava em outros lugares e levava para o ator.

Na Banca 43, pode-se comprar "especiarias nacionais e importados", como diz o letreiro. É possível comprar: frutas secas (da safra do ano vigente); cuscus marroquino; molhos ingleses; chocolate, Marzipan, salsicha defumada e arenque alemão; azeites libaneses; arroz italiano; anchovas espanholas; castanha francesas.

- Num sábado de tarde, parou uma limusine em frente ao Mercado, e desceu o presidente Geisel com a família e mais dois seguranças - conta Cláudio.

O presidente Geisel comprou passas de pêssego, iguaria tradicional de Pelotas/RS, para levar a Brasília. E a família dele compra lá produtos de origem alemã até hoje, em função da ascendência germânica.

Cláudio diz que é possível olhar pelo corredor e avaliar, pela quantidade de gente, a situação do mercado financeiro. Sem consultar a bolsa de valores nem nada. Para ele, o Mercado "representa tudo o que o estado produz em matérias de alimentos frescos, que são comercializados da forma mais tradicional, ou seja, fracionado, a granel, não-embalado". Sem falar que é frequentado por "desde marmiteiros até executivos".

E poetas. Pois certa feita, quando uma administração municipal pretendia derrubar o Mercado Público para construir uma avenida, Cláudio foi até a Banca 40, onde Mário Quintana estava, e perguntou ao poeta o que ele achava sobre isso. Surgiu então a célebre frase:

- O Mercado Público é protegido pelos fantasmas do tempo!

Quintana frequentava a Banca 40, a banca mais tradicional do Mercado. Durante décadas, a sorveteria foi o ponto de encontro de intelectuais e artistas da cidade. E é até hoje. Maria Madalena Melo Martins, 62 anos (há 32 no mercado), não consegue lembrar de todo mundo. Algumas vezes, só fica sabendo que o cliente era uma celebridade após sair uma matéria no jornal.

Em 1991, o jornalista Eduardo Bueno levou o músico estadunidense Bob Dylan para comer na Banca 40. Ninguém o reconheceu.

As histórias mais lembradas por Maria, porém, são com pessoas comuns. Como a do senhor que acordou do coma, depois de 35 dias inconsciente, e a primeira coisa que perguntou foi:

- A Banca 40 ainda existe?

Também há muitos casais que se conhecem na Banca 40 e depois voltam para lá para celebrar noivados e casamentos, apresentar filhos, netos e, inclusive, bisnetos.

A principal iguaria é a Bomba Royal, inventada pelo primeiro proprietário da banca, Manoel Maria Martins, sogro de Maria. O prato surgiu após a visita de um grupo de alemães à sorveteria. Eles eram refugiados da Segunda Guerra. Através do intérprete, pediram para servir junto três pratos tradicionais da casa: salada de frutas com nata, salada de frutas com sorvete e uma taça de sorvete. Para atender ao pedido, Manoel improvisou um prato com salada de frutas sem caldo na parte de baixo, com mais três bolas de sorvete e mais a célebre "nata batida" (um segredo guardado a sete chaves). Depois que os alemães foram embora, a iguaria foi batizada e consolidou-se como tradicional da casa. Custa R$ 7,00.

Na Banca 40 também são vendidos açaí na tigela, sanduíches, vitaminas, creme de papaia ao cassis, pratos quentes no almoço e frutas para levar.

Maria seguidamente é abordada por pessoas querendo comprar a Banca. Apesar das ofertas tentadoras, o proponente sempre ouve a mesma recusa. Afinal, para Maria, a Banca 40 não é apenas um negócio, mas um lugar de relações. Ela diz que sente o carinho do povo que vai à sorveteria, quase como uma família.

Um mercado protegido
O vigia do Mercado observa o pai-de-santo, que começa a explicar:

- O Bará é um orixá, uma divindade. Ele é dono dos caminhos e das encruzilhadas e representa também o trabalho, a fartura e o início de todas as coisas. E o Bará está assentado aqui, exatamente no centro do Mercado.

Segundo diz a religião africana, a divindade foi fixada em um ocutá, que está enterrado sob o chão, no centro do prédio. Até hoje há rituais de iniciação no Mercado, em função disso.

- Alguns dizem que foi um príncipe africano chamado Custódio quem enterrou o Bará, e não os escravos - diz o ator que interpreta o pai-de-santo.

Na Banca 43, bem ao lado, Cláudio pensa que Mário Quintana tinha realmente razão. Afinal, o Mercado Público de Porto Alegre é protegido pelos orixás do tempo."