terça-feira, 7 de junho de 2011

O dia em que eu (não) entrevistei Fernando Arrabal


Em abril eu passei muitas semanas agitado em função de uma entrevista com o dramaturgo espanhol Fernando Arrabal. Ele viria a Porto Alegre no dia 1º de maio para uma palestra no SESC. No período que antecedeu a entrevista, eu me preparei exaustivamente. Testemunha disso é meu colega do Mestrado em Teoria da Literatura da PUCRS, o diretor de teatro Daniel Fraga, que foi fundamental na pesquisa, dando dicas e indicando caminhos muito úteis. A ele dedico essa reportagem.

Na véspera da entrevista, eu estava em São Paulo, mas voltei a tempo de assistir à palestra no SESC. Trouxe na bagagem um gravador novo, que eu estrearia no dia seguinte, às 14h, hora do encontro com o Arrabal. Por esse e outros motivos, eu estava empolgado.

A entrevista, no entanto, foi um horror. E se isso foi muito frustrante no início, acabou se tornando um excelente mote para escrever o perfil do entrevistado. Você entende o porquê logo abaixo.

Antes disso: a reportagem foi publicada na edição 47 da Revista da Cultura. Se quiser ler diretamente lá, clique no link vermelho. Aqui publico uma versão estendida, já que em função do espaço o texto precisou ser editado.

Bom, aí vai o:

Perfil facebookiano de Fernando Arrabal

O dramaturgo espanhol parece não gostar de dar entrevistas, apesar de agendá-las. Eis o relato de uma entrevista que poderia ter sido.

por Augusto Paim

No dia 1º de maio, um domingo, Fernando Arrabal palestrou no Festival Palco Giratório, no SESC de Porto Alegre. Naquela noite, o pequeno homem de 78 anos e apenas 51 quilos trajava um paletó chinês preto de estampas com dragões dourados. Uma garrafa de vinho e uma taça semicheia jaziam na mesinha de apoio.

Com um discurso pausado e cheio de silêncios – performático! –, Arrabal discorreu sobre assuntos que volta e meia aparecem em suas falas públicas: sua amizade com grandes nomes da arte do século 20, como André Breton, Samuel Beckett, Picasso e Salvador Dalí; o por ele criado Teatro Pânico; sua adoração por Ruth Escobar; e a censura que sofreu do General Franco.

“Sou um pouquinho célebre porque me emborrachei um dia na televisão”, diz Arrabal a certa altura. Ele refere-se à caótica participação no programa de debates La Noche, da TVE espanhola, em 1989. Visivelmente embriagado, ele interrompia a todo momento a fala dos outros participantes e reclamava que não o deixavam falar. Além disso, cambaleou até cair e foi sentar-se na mesa no centro do cenário. Esse vídeo encontra-se no youtube [assista aqui], assim como outro, de agosto de 2009, que mostra a ida de Arrabal ao Programa do Jô. Lá ele não só cantou e dançou Catito, como também conduziu a própria entrevista, muitas vezes impedindo que Jô fizesse perguntas [assista aqui].

A relação de Arrabal com a imprensa é, no mínimo, confusa. A entrevista em Porto Alegre foi agendada para as 14h da segunda-feira seguinte à palestra no SESC. Arrabal não compareceu na hora marcada: enquanto ele sacava dinheiro em bancos pela cidade, pelo menos três entrevistas tiveram que ser canceladas ou adiadas. Quando finalmente chegou, uma hora depois do combinado, Arrabal sequer sabia se a conversa era para rádio, TV ou impresso. Reclamou de fome e sede e pediu salmão e suco de laranja para a assessora de imprensa.

A primeira pergunta levou um minuto para começar a ser respondida: Arrabal olhava para o repórter com ar de desdém, forçando-o a refazer a questão. A partir daí, passou a falar com longas pausas, ora usando as perguntas como gancho para falar dos assuntos que está acostumado a falar, ora respondendo porém fazendo para isso um grande volteio.

A entrevista foi um fracasso. Foram respondidas apenas algumas das nove perguntas que o repórter havia preparado. De modo que, como o diálogo não ocorreu, o único alento que resta é escrever o perfil de Fernando Arrabal buscando as informações em outros lugares – algo que já foi feito pelo jornalista estadunidense Gay Talese, que na década de 1960 escreveu um célebre perfil sobre Frank Sinatra sem entrevistar o cantor.

Eis abaixo uma lista das nove perguntas que estavam anotadas no bloquinho do repórter. Vão junto os respectivos comentários sobre a origem das questões e, eventualmente, as respostas.

1) Em começos de entrevista, é sempre bom deixar o entrevistado falar sobre um assunto que muito lhe interessa mas sobre o qual não costuma ser entrevistado. Fernando Arrabal fez uma incursão na área do biografismo quando escreveu Um escravo chamado Cervantes – um retrato do criador de Dom Quixote. O mote para o livro é a descoberta de um documento de 1569, onde consta que Miguel de Cervantes teria sido acusado de homossexualismo e por isso condenado, aos 21 anos de idade, a ter sua mão direita amputada – sentença que não se cumpriu porque Cervantes teria fugido para a Itália. No prefácio, Arrabal chama a esse trabalho de “exercício de admiração”. Certamente há pontos de identificação entre biografista e biografado que motivam o surgimento de um trabalho desse tipo. E motivam também a pergunta: “Por que esse ‘exercício de admiração’ por Cervantes? O que o fascina nele?” A esta pergunta, porém, Arrabal respondeu apenas que se interessava na peça de teatro de Cervantes chamada La Confusa. Nada mais.

2) A próxima questão questão está vinculada à anterior. Cervantes é mundialmente conhecido por Dom Quixote, mas considerava La Confusa sua melhor obra. Do mesmo modo, na palestra de domingo, Arrabal falava da sua predileção por Piquenique no front, sua primeira peça de teatro. A diferença entre o que o público lê em sua obra, e o modo como ele mesmo – o autor – enxerga seu trabalho pode ser resumida numa frase dita por Arrabal nessa palestra: “Eu já não sei o que escrevi”. Na segunda-feira, porém, a entrevista acabou antes que a pergunta “Qual é a sua lista de melhores obras suas?” fosse feita.

3) Arrabal se diz um azarado por sua relação com a política. Começou com seu pai, preso durante a Guerra Civil Espanhola e desaparecido após uma fuga. Depois o próprio Arrabal teve sua obra censurada pelo regime franquista – mereceu inclusive um processo, no qual é célebre a carta que Samuel Beckett escreveu em sua defesa. Uma das perguntas da malograda entrevista do dia 2 de maio em Porto Alegre seria: "O senhor já disse em entrevistas que é um azarado. No entanto, não é uma vida de sorte ter sido contemporâneo e, mais do que isso, amigo de gente como Beckett e Dalí?” Na resposta, Arrabal comentou apenas que, na época, nem Beckett nem Dalí podiam prever a dimensão que suas personalidades iriam mais tarde representar na arte do século 20.

4) Fernando Arrabal nasceu no dia 11 de agosto de 1932, em Melilla, cidade espanhola no Marrocos. Ainda criança foi morar em Madri e, em 1955, mudou-se para Paris, onde fez seus estudos e onde vive até hoje. “Sou da terra do desterro, da terra do teatro”, havia dito Arrabal no domingo. Então, cabe a pergunta: “Qual é a sua pátria?” A entrevista, no entanto, acabou antes dessa questão ser formulada. Devido ao insucesso evidente do entrevistador, não havia por que continuar.

5) Outra pergunta não realizada: “Cinema ou teatro?” Arrabal escreveu peças como O triciclo, O arquiteto e o imperador da Assíria e Cemitério de Automóveis, esta última encenada no Brasil, em 1968, pelo diretor Victor Garcia a pedido de Ruth Escobar: a montagem ocorreu numa oficina mecânica transformada em sala de espetáculos, com cadeiras giratórias e palco invadindo a área da plateia. Essa é a faceta teatral de Arrabal. Porém, o diretor gaúcho Diego Machado conta que descobriu Fando e Lis através do filme homônimo de Alejandro Jodorowsky, amigo de Arrabal. Do filme, Machado foi parar na peça e depois na decisão de montar o próprio espetáculo. “Fando e Lis foi uma vivência, muito mais que uma encenação”, conta ele. Mas mais do que pensar na adaptação das peças em filmes, há também o fato de o próprio Arrabal ter trabalhado com cinema. Seu trabalho mais conhecido é Viva la muerte (1971), considerado por muitos uma das películas mais violentas da história do cinema.

6) Uma pergunta teórica – “Na história do teatro, a importância passou do escritor para a encenação, a atuação e a montagem. Depois, para o diretor. Hoje, seria o público? Ou não há mais hierarquia?” – exige uma contextualização. No início da década de 1960, o crítico austro-húngaro Martin Esslin publicou um livro no qual tentava encontrar elementos em comum numa diversidade grande de autores contemporâneos. Estava criado assim o termo Teatro do Absurdo, que Esslin associava às obras de Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Jean Genet e o próprio Arrabal. Um bom exemplo do que seria o Teatro do Absurdo está na montagem brasileira de Cemitério de Automóveis. Já aí havia uma quebra de paradigmas: o público deixa de ter um papel de espectador, passando a participar ativamente do espetáculo. Isso vai ser ampliado com propostas teatrais posteriores, como o Teatro do Oprimido do brasileiro Augusto Boal, onde praticamente já não há separação física nem hierarquia entre ator, diretor e público. Mas nem sempre foi assim. No início da história do teatro, o texto tinha uma importância muito maior que a encenação, como se o modo de representar pouco interferisse no conteúdo da obra. É só na segunda metade do século 18 que Diderot escreve Paradoxo sobre o ator, em que discorre sobre a importância da atuação no teatro. A partir daí, o conhecimento sobre o ato de encenar o texto vai se ampliando, e a figura do diretor vive seu período de auge como a peça central de um espetáculo de teatro. É quando chega o Teatro do Absurdo, onde tudo isso começa a cair por terra. Arrabal, porém, recusa-se a falar na existência de um antes e um depois na arte, recusa-se a diferenciar vanguarda de retaguarda. Em vez disso, cita o conceito matemático dos fractais para refutar qualquer ideia de evolução linear tanto na ciência quanto na literatura. “É surpreendente que se considere minha obra de vanguarda, e outros autores mais jovens que eu se considere que já não significam nada”, diz ele, para depois sublinhar: “Não se sabe. Não sabemos.”

7) No domingo, Arrabal começou a palestra dizendo: “o teatro está em crise, sempre esteve”. A crise, portanto, seria condição para o teatro existir. Depois, falou que “tem que sofrer para fazer teatro.” Arrabal muito sofreu na sua infância, por causa da ausência do pai e também por ter em casa uma mãe que se envergonhava da situação política do marido: quando este desapareceu, ela disse aos filhos que o pai já estava morto, embora não o soubesse de fato. A obra dramática de Arrabal traz a marca dessa experiência de vida, principalmente no que diz respeito às relações familiares. O que levanta a questão: “Arte é sofrimento? Arte pode ser felicidade?” Arrabal ou não entendeu, ou fugiu da resposta, pois iniciou uma digressão de dez minutos, que culminou na seguinte afirmação: “gostaria de dizer que há muitos paralelos entre o Montanha de Açúcar, o jovem que criou o Facebook, e minha própria vida”. Montanha de Açúcar é a tradução do sobrenome alemão de Mark Zuckerberg. O ponto de ligação seria o fato de ambos terem vencido concursos para superdotados, algo que Arrabal faz sempre questão de lembrar. “Me interessou muito o Facebook”, diz ele, contando que inclusive chegou a ter um perfil nessa e em outras redes sociais. Ao cabo de alguns meses, porém, descobriu, por intermédio de amigos, que existem vários outros usuários no Facebook usando seu nome. Páginas falsas, porém com fotos e informações verdadeiras sobre sua vida. “Não fazem isso por nenhuma ambição de dinheiro, nem para molestar”, diz Arrabal. Mesmo assim, decidiu sair.

8) No início da década de 1960, Arrabal criou com os amigos Roland Topor, Alejandro Jodorowski e Jackques Sternberg, entre outros intelectuais, o conceito de Teatro Pânico. Nele, a peça teatral passa a ser um ritual do qual o público não escapava impune: é bastante conhecido o episódio em que Arrabal e companhia levaram 500 quilos de carne para o palco. O Teatro Pânico foi inclusive teorizado em livro escrito por Jodorowski. Muito já se falou sobre isso, mas talvez haja outros pontos de abordagem, como por exemplo: “Qual é o Pânico do século 21? Que movimento – que pânico – precisaria o teatro hoje?”Arrabal replicou esta pergunta com outra pergunta – “você foi na minha palestra ontem?” – e depois respondeu curtamente que o teatro e a humanidade estão em crise.

9) Eis esta que talvez seja a única pergunta claramente respondida: “O senhor não gosta de ser visto como um provocador. Por quê? O que tem o senhor contra a provocação?” Segundo Arrabal, “o provocador é um cretino que imagina que há pessoas mais cretinas que ele que vão ficar deslumbradas ou surpreendidas por algo que ele possa fazer.”

Antes de encerrar: um perfil de Fernando Arrabal não pode se considerar completo, se mostrar apenas a relação dele com a imprensa. Quando se trata de autorizar a encenação de peças suas, Arrabal tem outro comportamento: ele não concede exclusividade a nenhuma companhia e também não cobra nada. Quer apenas que suas peças virem espetáculo, nada mais.

Em 2007, o ator e diretor gaúcho Alexander Kleine escreveu para Arrabal pedindo autorização para encenar O arquiteto e o imperador da Assíria. Segundo ele, Arrabal foi muito gentil. Respondeu ao email dizendo: “Que alegria, querido desconhecido. Conte com minha autorização. Amplexo arrabal de Paris.” Kleine, no entanto, explicou-lhe que seria necessário um documento assinado, devido a questões legais. A nova resposta de Arrabal: “Tem minha autorização firmada com sangue e esperma. Beijos.”

Kleine conta que se assustou com a resposta, mas depois a encarou positivamente: “Ele é um indignado com a mesquinhez do ser humano, as convenções podres, com o capitalismo, as guerras.” E faz questão de frisar: “Ele não tem papas na língua, fala o que pensa e sempre tem resposta pra tudo.”

Ou quase tudo.

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