segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Para todos os gostos

O artigo abaixo, sobre a diversidade cultural dos mercados públicos brasileiros, foi publicado na belíssima revista Sabores. Trata-se de uma publicação anual sobre gastronomia e história.

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"Para todos os gostos

por Augusto Paim

Em terras onde se respira ares democráticos, tudo é passível de virar uma acalorada discussão, um debate minimamente interessante. Ou quase tudo: não se discute a necessidade de discutir, por exemplo.

Há também outros temas geralmente banidos das rodas dos conversa, como nos lembra o dito popular:

Gosto não se discute!

Para muita gente, não se discute religião, política, sexo. Afinal, são questões de gostar, não de escolher. Como o estilo da roupa que você usa, o seu corte de cabelo, a sua igreja, o time que você torce, as suas preferências alimentares. Gosto não se discute porque, se não é sempre inato, é muitas vezes aprendido nos primeiros anos de vida, nas mais sólidas relações que compõe a estrutura familiar de cada indivíduo, ou por força de experiências muito particulares. O gosto pode mudar com o tempo, é claro, pode amadurecer, aperfeiçoar-se, mas a base dele está aquém das coisas que dependem de escolhas. É, na maioria dos casos, cultural: você não escolhe o gosto, ele é que escolhe você.

Um primeiro significado da palavra “gosto“ diz respeito especificamente a sabor, e quer marca mais característica de uma cultura do que a culinária típica da região? Quem compreende a necessidade do gaúcho pelo chimarrão, bebida de gosto amargo? Ou o baiano e seu apimentado acarajé? A cultura regional é um conjunto de gostos compartilhados, diria-se mesmo “ensinados“.

Por serem redutos de preservação – e transformação, pois tudo se transforma – de todos esses gostos, os mercados públicos têm muito o que dizer.

O gosto arquitetônico

Viesse uma enchente e mergulhasse sua cidade na água, um único prédio restasse para garantir a preservação da História e das histórias (a sabedoria popular, os causos), qual prédio seria? Algum museu? A prefeitura?

O mercado público! Afinal, tudo ali se encontra e ali todos se encontram. A variedade de produtos expostos nas barraquinhas é a marca gastrônomica da cidade. Os sotaques que se escutam nos corredores e os rostos das pessoas são o retrato vivo da miscigenação. O próprio prédio é um registro das transformações históricas.

Talvez por isso os mercados públicos sejam à prova de enchente. A quem interessar, vale fazer uma pesquisa sobre essa estranha coincidência unindo mercados públicos de diferentes partes do Brasil. Como o de Porto Alegre, cuja resistência à enchente de 1941 mereceu até uma placa na entrada da Ala Sul. Outra coincidência: boa parte dos edifícios têm estilo arquitetônico “eclético“, uma marca da cultura brasileira como um todo, que não se identifica nunca com uma coisa só. Voltando ao exemplo de Porto Alegre: quando o mercado público foi inaugurado, em 1869, tinha estilo neoclássico. Era composto por um único andar e havia sido construido no porto, entre duas docas, onde atracavam embarcações tranzendo peixes e mercadorias. Hoje essas docas deram lugar à prefeitura e a um terminal de ônibus, construídos sobre aterros. Em 1912, após um incêndio que quase acabou com tudo, foi construído o segundo andar, e hoje o prédio tem até escada rolante. Assim como outros mercados públicos, o de Porto Alegre traz, em suas entranhas, a memória de outras épocas, de diferentes momentos e estilos, e mantêm-se aberto ao presente e ao futuro.

O gosto da diversidade

Comida tem gosto e tem cheiro, e nesse sentido os mercados públicos são pratos cheios. No de Florianópolis, a peixaria e a brisa à beira-mar dão um aroma todo especial. Há opções para todos os gostos: caranguejo, anchova, tainha, pirão; chope gelado, caldo de cana; bolinho de bacalhau, omelete de camarão; e sucos de uma variedade imensa de frutas.

Entrar no mercado, em Florianópolis ou em qualquer lugar do Brasil, é mergulhar na diversidade.

O Bazar Mansur, loja inaugurada em 1947, é fruto da imigração libanesa na ilha, numa época em que ainda não se falava em globalização. E o mercado hoje tem comida italiana e culinária oriental. E tudo que um turista espera encontrar em Florianópolis.

Em São Paulo, tem o famoso pão com mortadela. No Mercado Modelo, em Salvador, tem tapioca. Em Aracaju, carne de bode ou até mesmo de caranguejo – servida numa tigela de barro, pronta para comer, ou com um martelinho de madeira para que você mesmo possa extrair a carne.

Em tempos em que os alimentos orgânicos ganham importância, os mercados públicos permanecem comercializando produtos de origem. Com isso, preserva-se o processo inteiro, a cadeia de produção com sua história e características, não só o resultado. E preserva-se porque é artesanal, é comércio e cultura ao mesmo tempo, sem estar atrelado a nenhuma moda.

Não importa onde se esteja, o mercado público de qualquer cidade mostra sempre essa mistura do mundial com o regional, do preservado com o novo.

O gosto das histórias

Mercados públicos são ambientes de efervescência humana, cultura viva. Só em Porto Alegre, são 120 mil visitantes por dia. Pessoas que vêm e vão, que passam, mas que também interagem com o local, contam, escutam e vivem histórias.

Na capital gaúcha, eram frequentadores do mercado público o poeta Mário Quintana e o músico Lupicínio Rodrigues, esse último famoso pelas batucadas na caixinha de fósforo e pelo papel que pedia emprestado no Bar Naval para escrever as letras de suas músicas.

Em Florianópolis, tem a história de um gato que sobreviveu a um incêndio escondendo-se dentro de um freezer. Em Porto Alegre, um homem acordou do coma e a primeira coisa que perguntou foi: “a banca 40 ainda existe?“

Os mercados públicos são legados de histórias, e também da própria História. O de Florianópolis, por exemplo, teve sua localização determinada numa disputa entre dois grupos políticos, no início do século XIX. Na última reforma do Mercado Público de Porto Alegre, as escavações permitiram a descoberta de uma câmara escondida: acredita-se que poderia ser o início de um antigo túnel ligado à prefeitura, servindo como rota de fugas políticas, ou também um depósito de escravos.

Os mercados públicos comercializam mais que produtos, comercializam bens culturais, que, em certa medida, são bens duráveis, mesmo que em constante mutação. E a preservação nesses lugares é espontânea: o que fica é porque tem que ficar, porque resiste em meio ao dinamismo e à novidade.

Mercados públicos são fortalezas de portões abertos aos povos, com opções para todos os gostos. Por preservarem, merecem também ser preservados.

E isso também é indiscutível."

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Diário de bordo, parte 2: a apuração

Ontem recebi uma notícia inusitada: o Esporte Clube Juventude, time de futebol que foi pauta da minha reportagem em quadrinhos, acaba de ser rebaixado para a Série D do Campeonato Brasileiro. Em 2007, o time estava na Série A.

Essa notícia é o mote para a segunda parte do meu diário de bordo, com reflexões práticas sobre o processo de fazer a reportagem em quadrinhos "Juventude: tempo de crescer".

(Se você não leu a primeira parte, cutuque aqui.)

A apuração

De maneira geral, posso dizer que a apuração de uma reportagem em quadrinhos tem pouca coisa de diferente da apuração de reportagens impressas convencionais. Pelo menos no que toca à experiência que tive com a minha primeira reportagem em quadrinhos.

Cheguei na cidade de Caxias do Sul, na serra gaúcha, no dia 1º de junho, uma terça-feira. Antes de ir, eu já havia pesquisado em linhas gerais a história do clube, como é de praxe - melhor já ir sabendo algumas coisas, de modo a usar o tempo de apuração para aprender outras. Ao chegar em Caxias, porém, tratei de já ir ao Estádio Alfredo Jaconi. No primeiro dia, meu objetivo foi unicamente me situar. Fiz uma visita guiada pela sala de troféus e pelo estádio. Nisso contei com a prestatividade dos funcionários do clube. O assessor de imprensa também me passou os contatos de algumas pessoas com quem eu pretendia conversar: jogadores, dirigentes, funcionários, torcedores, historiadores etc.

Para mim, o primeiro dia de apuração normalmente é isso mesmo: cruzamento de informações, reconhecimento do cenário e da cronologia da pauta, percepção de quem são os principais personagens e quais são os principais eventos da história que eu vou contar, e por aí vai. Também aí começa a edição: posso dizer que nesse primeiro dia já me ocorrem ideias sobre como editar a reportagem, embora eu esteja sempre pronto a descartá-las no dia seguinte conforme o andamento da apuração.

Na quarta-feira, passei mais algumas horas no estádio, apurando e já fazendo algumas entrevistas. Voltei lá na quinta-feira, e fiz outras tantas. E na sexta-feira de manhã, enquanto esperava a chegada da desenhista Ana Luiza Goulart Koehler, colhi os últimos depoimentos.

Essa é uma questão importante, a presença da desenhista. Desde o início, eu levantei a bandeira de que o desenhista é tão importante no momento da apuração de uma reportagem em quadrinhos quanto o jornalista. Afinal, eu busco uma narrativa original em quadrinhos, não uma adaptação de uma reportagem feita em outro formato. A diferença entre esses dois pólos - uma reportagem em quadrinhos e uma reportagem ilustrada - é sutil, mas existe. E manifesta-se principalmente durante a apuração.

Afinal, no jornalismo em quadrinhos a imagem traz tantas informações quanto o texto. Informações visuais e ambientação são, inclusive, muitas vezes liberados do texto para ir para o desenho. Sobre isso, vou falar melhor em outra parte deste diário de bordo. O importante é que, tendo em vistas essas minhas convicções, o desenhista precisava estar lá comigo para acompanhar os detalhes visuais da apuração, de modo a fazer desenhos mais fidedignos.

Em função de compromissos, a Ana só pôde me encontrar lá na véspera do meu retorno a Porto Alegre. Durante a semana, eu procurei tirar o maior número de fotos possíveis para embasar o trabalho dela, e nisso senti bastante dificuldade. Eu preferiria estar concentrado apenas na apuração, e a necessidade de fazer registros visuais me desconcentrava bastante - imagino o drama vivido pelos repórteres "abelhinhas", jornalistas de televisão que fazem toda a reportagem sozinhos, inclusive montando a câmera num tripé. Enfim, resumindo: eu preferiria que o desenhista estivesse lá comigo cuidando dessas questões. Como não foi possível, tivemos que adaptar.

Na sexta-feira, 4 de junho, a Ana foi ao meu encontro. Como eu sabia que ela viria, reservei a tarde para revisitar com ela alguns cenários importantes da pauta. Apesar de estar chovendo bastante, a Ana concordou que a presença dela lá, vendo com os próprios olhos o que eu vira nos últimos dias, dava a ela mais informações para desenhar. Porque uma foto nem sempre dá a sensação de profundidade e dimensão do espaço que o nosso olho percebe.

Ainda na sexta-feira, durante o almoço, expus para a Ana o que eu tinha apurado até ali - a história do Juventude e a narrativa do seu fracasso nos últimos anos. Juntos fizemos uma pré-edição da reportagem, uma espécie de decupagem dos assuntos apurados já pensando na sua distribuição nas páginas. Vou falar melhor sobre isso mais adiante, em outro tópico deste diário de bordo.

Antes de concluir, outro aspecto importante sobre a apuração - aspecto, no entanto, não exclusivo de reportagens em quadrinhos. Refiro-me à questão da tese que o jornalista leva para a apuração. Isso geralmente é apontado como algo ruim, quando diz respeito a uma tentativa do jornalista de manipular a realidade apurada para que o resultado confirme sua tese inicial. Eu confesso: eu tenho minhas teses quando vou para a rua. No entanto, a apuração é para mim um processo de questionamento dessas teses, onde pode haver modificações, ou confirmações, ou mesmo formulação de outras teses.

No caso dessa reportagem em quadrinhos, por exemplo, eu pensava que encontraria no clube um clima de abatimento, haja vista que o clube havia sido rebaixado para a Série C em 2009, depois de dois anos disputando a série B e, antes disso, treze anos seguidos disputando a Série A. Essa era a minha tese: o clima deve estar ruim no clube. No entanto, chegando lá, encontrei justamente o contrário: estavam todos muito motivados, esperançosos com a melhora do time. Se o Juventude não voltasse para a Série B em 2011, voltaria no ano seguinte. A ambição - mirabolante para alguns, razoável para outros - de comemorar o centenário do clube, em 2013, na Série A, parecia ser um fator motivador. Mas havia outras coisas e, de fato, no processo de apuração fui entendendo o porquê disso. Há explicações para os dois rebaixamentos do clube, depoimentos de torcedores e funcionários falando dos erros cometidos pelas gestões anteriores. Como em 2010 retornou à direção do clube a gestão responsável pelos maiores títulos do Juventude, era de se esperar que os erros fossem consertados. Daí a esperança.

O que encontrei lá, portanto, não foi um clima de abatimento, mas ao contrário: bastante otimismo e motivação. E eu estaria sendo injusto se, na reportagem, não relatasse isso.

Eu gosto bastante das reportagens que me fazem reformular minhas teses. Assim, no plural, porque nunca é uma única tese, e geralmente quando estou apurando estou também em constante avaliação das informações e de suas implicações, o que gera novas teses. Mas muitas vezes há uma tese geral, e essa tese geral é preponderante justamente por ser óbvia, previsível, resultado de operações lógicas. E quando essa tese é desconfirmada, desconfirma-se também os mecanismos da previsão. Nesses casos, sempre fico com a sensação de que a pauta cresce: afinal, por que não ocorreu o óbvio? O fato de o óbvio não ter ocorrido é a nova pauta, geralmente inusitada.

De modo que acho importante o jornalista ter suas teses, desde que durante todo o processo continue sendo apenas isso - uma tese, uma hipótese, algo a ser confirmado ou, conforme o caso, descartado. Considero negativa a tese que se impõe, ignorando a realidade e quase dispensando a apuração. Mas se o jornalista encara a tese como um processo em movimento, periga até fazer bem para a pauta.

(Continua.)

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Ps.: a Ana Koehler escreveu seu próprio relato sobre o processo de fazer essa reportagem em quadrinhos. É muito interessante ter esse outro lado, a visão do desenhista, inclusive abordando a pesquisa realizada para se fazer os desenhos, que eu não pretendia abordar aqui. Ainda que a Ana já tenha avançado no post sobre outros aspectos da reportagem - aspectos que pretendo tratar mais adiante - recomendo a leitura. Cutuque aqui.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Tragicomédia da morte

O jornal Zero Hora publicou hoje, no caderno ZH Moinhos, uma crônica minha. Segue abaixo:

"Uma morte tragicômica


Vejo com bons olhos a ideia de erguer o braço na faixa de pedestre os mesmos bons olhos que, se os carros não parassem, seriam fatalmente privados de ver qualquer outra coisa.

Isso quase ocorreu comigo, há alguns meses, numa das ruas mais difíceis de atravessar em Porto Alegre. Quando os carros vêm da Protásio Alves e entram na Mariante, o pedestre precisa ser ágil e oportunista na corrida para alcançar a outra margem. A faixa de pedestre que existe ali é como uma ponte de cordas sobre um desfiladeiro. Não é à toa que esse é um dos pontos mais frequentados pelos agentes da campanha de respeito à faixa de segurança.

Eu pretendia alcançar o canteiro central embaixo do Viaduto da Silva Só. Percebi que a espera seria eterna e deixei o braço tal qual uma cancela. Um carro parou. Atravessei a rua caminhando tranquilamente sobre a faixa, o olhar firme, queixo erguido, satisfeito por ter contribuído com um gesto físico e simbólico para uma maior conscientização do trânsito na Capital. Pouco antes de pisar no meio-fio, porém, um carro passou ao lado do que parara e, ignorando a faixa de pedestre, zuniu o motor barulhento pela pista livre. Juro que senti um deslocamento de ar na canela. Subi na calçada e olhei para a direita. Para minha surpresa, um fusca rosa afastava-se em alta velocidade em direção à Goethe.


Assim como aquele carro, a vida não para, e no caminho até em casa pensei nas implicações do caso: se o veículo tivesse me atingido, seria um acontecimento insólito. Quem espera morrer assim? Viver uma vida séria e, de repente, ter um obituário com ar de comédia publicado no jornal do dia seguinte: “um homem morreu ontem, na Capital, atropelado por um fusca cor-de-rosa.“ Para um humorista, entretanto, seria uma morte coerente, talvez até mesmo digna. Não deixaria de ser trágica, como a morte geralmente é, mas teria também um pouco de humor. Uma última piada, para os outros rirem.

De certa forma, a lógica do fusca rosa impera no trânsito brasileiro. Há muito tempo, a morte por atropelamento não é mais encarada como uma tragédia se é que algum dia o foi. Ao abrir o jornal, o leitor depara diariamente com números que quantificam essas mortes, transformam-na em rotina, banalizam-nas. O banal é o meio termo entre a tragédia e a comédia. Portanto, quem duvida que, no futuro, essas mortes cheguem ao cúmulo de provocar risos?

Na dúvida, estique o braço para impedir."

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Nostalgia

Revendo os primeiros posts deste blog, cheguei a uma nostálgica e triste conclusão: eu era mais engraçado na Alemanha.

domingo, 5 de setembro de 2010

Você viu a capa de hoje do principal jornal de...

... Moscou? Ou de Tóquio? Dublin? Cairo? Quito?

Não é pergunta maluca. É que o Newseum, museu de Washington, Estados Unidos, mantém este espaço virtual aqui, onde é possível ver a capa dos principais jornais do mundo, em todos os continentes. Detalhe: você vê sempre a capa do dia, ou seja, o site é atualizado diariamente.

Muito interessante. Ainda não descobri a utilidade, mas é algo que entretém.