quinta-feira, 21 de julho de 2011

Conto do Scliar

Ontem à noite li um belíssimo conto de Moacyr Scliar chamado Mílton e o concorrente. O texto é curto e por isso copio abaixo na íntegra. Faz parte da antologia de Scliar publicada pela Companhia das Letras.

Segue também um vídeo, em que o próprio Scliar lê o seu conto no programa Jogo de Ideias.

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"Milton e o concorrente

Mílton ainda não abriu a sua loja, mas o concorrente já abriu a dele; e já está anunciando, já está vendendo, já está liquidando a preços abaixo do custo. Mílton ainda está na cama, ao lado da amante, desta mulher ilegítima, que nem bonita é, nem simpática; o concorrente já está de pé, alerta, atrás do balcão.

A esposa — fiel companheira de tantos anos — está ao seu lado, alerta também. Mílton ainda não fez o desjejum (desjejum? Um cigarro, um pouco de vinho, isto é desjejum?) — o concorrente já tomou suco de laranja, já comeu ovo, torrada, queijo, já sorveu uma grande xícara de café com leite. Já está nutrido.

Mílton ainda está nu, o concorrente já se apresenta elegantemente vestido. Mílton mal abriu os olhos, o concorrente já leu os jornais da manhã, já está a par das cotações da bolsa e das tendências do mercado. Mílton ainda não disse uma palavra, o concorrente já falou com clientes, com figurões da política, com o fiscal amigo, com os fornecedores.

Mílton ainda está no subúrbio; o concorrente, vencendo todos os problemas do trânsito, já chegou ao centro da cidade, já está solidamente instalado no seu prédio próprio. Mílton ainda não sabe se o dia é chuvoso, ou de sol, o concorrente já está seguramente informado de que vão subir os preços dos artigos de couro. Mílton ainda não viu os filhos (sem falar da esposa, de quem está separado); o concorrente já criou as filhas, já formou-as em Direito e Química, já as casou, já tem netos.

Milton ainda não começou a viver.

O concorrente já está sentindo uma dor no peito, já está caindo sobre o balcão, já está estertorando, os olhos arregalados — já está morrendo, enfim."

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Curso de Extensão em Reportagem em Quadrinhos: NOVAS DATAS

Curso de Extensão:

Reportagem em Quadrinhos

Desenho de Maumau

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O quê: curso de reportagens em quadrinhos

Com quem: Augusto Paim, jornalista cultural e escritor

Quando: sextas-feiras, das 14h às 18h, de 12 de agosto a 2 de setembro de 2011

Onde: PUC RS

Inscrições: até 8 de agosto

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Quer aprender a trabalhar com um novo gênero do jornalismo que é uma tendência seguida por jornais como a Folha de São Paulo e o argentino La Nacion? A Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) oferecerá em Porto Alegre um Curso de Extensão inédito sobre reportagens em quadrinhos. Serão 20 horas-aula, divididos em quatro encontros, sempre às sextas-feiras, a partir do dia 12 de agosto de 2011. A proposta é unir teoria e prática: os alunos não só serão estimulados a refletir sobre o uso da linguagem dos quadrinhos no jornalismo, como também participarão de uma sala de redação visando à produção de reportagens nesse formato.

O curso é aberto para estudantes da PUC e para o público em geral. Não é exigido ter conhecimentos de quadrinhos. Também NÃO é necessário saber desenhar: para fins didáticos, serão usadas fotografias. No curso, o aluno aprenderá ainda sobre a escrita de roteiros e o uso de técnicas narrativas, que podem ser aplicadas em qualquer linguagem – especialmente no cinema, que têm muitos pontos em comum com os quadrinhos, haja vista que todo filme começa com um roteiro e um storyboard.

O Jornalismo em Quadrinhos surgiu na década de 1990, com os livros-reportagens sobre conflitos bélicos do jornalista maltês Joe Sacco. Já no século 19, no entanto, havia experiências nesse formato. Agora surge uma nova geração internacional de HQ-repórteres e de veículos especializados, como http://www.cartoonmovement.com/ e o http://www.newsmanga.com/, este último uma experiência pioneira com mangás jornalísticos diários. Veículos tradicionais também têm publicado reportagens em quadrinhos, haja vista que essa pode ser uma saída para impedir o fim do jornalismo impresso, ao atrair novos leitores de jornais. O gênero também tem sido trabalhado em biografias e outras formas de não-ficção em quadrinhos.

Para saber mais sobre o Jornalismo em Quadrinhos, a sua história e a nova safra de HQ-repórteres, leia esta reportagem publicada na edição de março da Revista da Cultura.


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Objetivos do curso: incentivar a reflexão sobre o gênero Jornalismo em Quadrinhos a partir da experiência prática; estimular a produção de reportagens em quadrinhos por meio de orientação especializada; qualificar a produção e a reflexão teórica sobre Jornalismo em Quadrinhos através da introdução e aprofundamento do tema no ambiente da Graduação.

Ementa: a linguagem dos quadrinhos aplicada ao jornalismo; a pauta, a apuração e a edição no Jornalismo em Quadrinhos.

Pré-requisitos: nenhum. Apenas são recomendáveis conhecimentos prévios sobre jornalismo em geral.

Programa

Aula 1 - Palestra "Elementos da Narrativa em Quadrinhos" + reunião de pauta

Aula 2 - Apresentação das apurações + decupagem dos temas

Aula 3 - Roteiro + Edição

Aula 4 - Apresentação das reportagens + Avaliação

Ministrante do curso: Augusto Paim é jornalista cultural, escritor e tradutor. Atualmente, cursa o Mestrado em Teoria da Literatura na PUC RS e trabalha como jornalista cultural freelance. Já publicou reportagens nas revistas Continuum, Norte, Aplauso e Revista da Cultura. Em 2009, traduziu para o português o livro Johnny Cash - uma biografia, premiada obra do quadrinista alemão Reinhard Kleist. Em 2010, foi curador e organizador do I Encontro Internacional de Jornalismo em Quadrinhos. No mesmo ano, fez uma reportagem em quadrinhos sobre o Esporte Clube Juventude, com a quadrinista Ana Luiza Koehler. Agora trabalha em uma reportagem em quadrinhos sobre o Complexo de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro, para o site Cartoon Movement. Desde 2007, ministra palestras sobre quadrinhos em escolas e universidades. Mantém os blogs http://www.cabruuum.blogspot.com/, sobre HQ, e http://www.augustfest.blogspot.com/, sobre jornalismo e literatura.

Resumo das informações

Carga horária: 20 horas-aula.

Período: De 12 de agosto a 2 de setembro de 2011.

Dia e horário: sextas-feiras, das 14h às 18h.

Datas: 12, 19 e 26 de agosto e 2 de setembro de 2011.

Local: PUC de Porto Alegre

Vagas: 15 a 20.

Investimento: R$ 324 para alunos, diplomados, professores e funcionários da PUCRS; R$ 360 para o público em geral.

Inscrições: até 8 de agosto de 2011.

Onde se inscrever: Av. Ipiranga, 6681, Prédio 15, sala 112, telefone (51) 3320 3727.

Outras informações: com o ministrante Augusto Paim (augusto.paim [@] gmail.com) ou com o coordenador Luciano Klöckner, no telefone (51) 3320 3727, de segunda a sexta-feira, das 8h às 21h15min, ou no site.

Remover histórias

"Jornalista é como um médico. Um remove órgãos, e o outro, histórias."

Eis uma frase que atinge com precisão cirúrgica o cérebro de todo jornalista que encara seu trabalho com seriedade. Foi dita pelo HQ-Repórter Joe Sacco. Cutuque aqui para saber o contexto.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

A parede no escuro


Tem livros que nos fazem companhia por um certo tempo, mexendo em lembranças e apontando novos caminhos nos velhos terrenos. O último livro que me acompanhou dessa forma foi o romance A parede no escuro, de Altair Martins. Terminei-o hoje, após dois ou três meses de leitura vagarosa e, por isso mesmo, atenta.

O centro do enredo é o atropelamento de um padeiro, num dia de chuva intensa, bem cedo da manhã. Acompanhamos a aflição do motorista, um professor de matemática envolvido em seus próprios conflitos pessoais. Esses conflitos reforçam a a sua sensação de culpa pelo atropelamento: ele fugiu sem prestar socorro. A partir daí (e também antes e depois desse fato, porque a narrativa não é cronologicamente linear, pelo menos não sempre), vemos um conjunto de existências que se (re)cruzam e se (re)ligam a partir desse acidente.

Falar sobre o acaso da vida, sobre as ligações que temos com estranhos sem sequer desconfiar, seria um clichê. Mas A parede no escuro não vai por esse caminho. Tudo ali é apenas sugerido. É um cruzamento que não chega a acontecer, talvez nem mesmo exista. Ficam no ar hipóteses incestuosas, sugestões de traição, paternidades não-confirmadas, rancores antigos que quase explodem mas que no fim permanecem onde sempre estiveram, escondidos, como ratos no escuro. No meu ver, Altair Martins escreve sobre vidas solapadas de pessoas que fazem esforços enormes para não exporem suas fragilidades. Pessoas que escondem querendo calar o passado. Mas o problema escondido aparece ali mesmo, no presente, manifesto em maior intensidade justamente em função da tentativa de acobertamento.

O que mais me impressiona na narrativa é o fato de ela ser quase totalmente composta de monólogos interiores. O leitor é como um deus que tem acesso aos diferentes pontos de vista sobre um mesmo assunto, uma mesma pessoa, um mesmo fato. O leitor tem essa visão privilegiada que os próprios personagens não tem, tão embebidos que estão em sua visão parcial de mundo e em sua tentativa de omitir e calar. Assim vejo o significado do título do livro: estamos todos no escuro, todos na mesma situação de não enxergar, e uma parede invisível nos impede de nos comunicarmos verdadeiramente, mesmo com as pessoas mais próximas. Trata-se de uma questão existencial, do modo como se configura a vida: ela é inicialmente solitária e só deixará de ser assim se se buscar o outro. E não só. Buscar o outro no seu íntimo. Do contrário, ficamos na aparência, quase sempre, e essa é uma outra forma de solidão. Uma solidão social.

"Aceitando apenas a casca vazia do pão" (p. 253). "Estar no meio de tudo e não ver o essencial" (p. 126). "Eu olhando o pátio, e imediatamente lembrei de coisas de churrasco e carrinhos de rolimã e evitei que o Seu Fojo me viesse sendo um homem bom" (p. 206).

Eis um livro com qualidade narrativa e temática.

Um livro que reverbera no escuro.

Rompendo paredes.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Peter Pumpler subverte o subjétil

No meio da tarde de sábado, 21 de maio, estive no Ateliê Subterrânea, em Porto Alegre. Ali estava acontecendo a exposição da obra do alemão Peter Pumpler, que fez residência artística na capital gaúcha a convite do Goethe-Institut. Nesse dia, o artista encontrou-se com o público.

Eu não conhecia sua obra, por isso tive uma grata surpresa. Peter Pumpler tem um processo artístico diferenciado. Ele trabalha com tinta acrílica, que ele joga sobre a tela, deixa secar e depois tira. Em algumas obras, ele costuma esticar e dobrar essa tinta, criando assim uma mistura de pintura com escultura. Um exemplo:



O humor é constante em sua produção. O trabalho dele que mais gosto é o que segue abaixo. Em vez de estar no centro, como é o esperado, a tinta foi parar no canto da tela, por fora, como que timidamente escondida.


Mosaik - PETER PUMPLER's artwork

[Clique sobre a figura para enxergá-la ampliada.]

Há vezes em que Peter Pumpler usa, como fonte criativa, a madeira que dá suporte à tela. Trata-se de um processo instigante. Afinal, quando vemos uma pintura, focamos nossa atenção na peça artística, ou seja, na arte em si, e rotineiramente esquecemos que essa arte só é possível ao suporte em que ela é produzida e veiculada. Nesse sentido, a arte tem uma divída para com a tela, a madeira, o pano. Para com o "subjétil", como definiu Jacques Derrida referindo-se aos desenhos de Antonin Artaud. Por isso é curioso pensar que a arte é um cavalo de Tróia, que transcende o mundo das coisas terrenas usando a própria realidade física.

A semelhança entre Pumpler e Artaud (e, ao mesmo tempo, o que os diferencia de outros artistas) é que eles expõem propositalmente esse processo, quebrando assim a barreira automática e quase natural entre suporte e obra. É o que Derrida chama de "subverter o subjétil".

Outros trabalhos do Peter Pumpler você pode ver aqui. Para saber mais sobre sua obra, sua formação e sobre o programa de residência artística, cutuque aqui.