segunda-feira, 11 de julho de 2011

A parede no escuro


Tem livros que nos fazem companhia por um certo tempo, mexendo em lembranças e apontando novos caminhos nos velhos terrenos. O último livro que me acompanhou dessa forma foi o romance A parede no escuro, de Altair Martins. Terminei-o hoje, após dois ou três meses de leitura vagarosa e, por isso mesmo, atenta.

O centro do enredo é o atropelamento de um padeiro, num dia de chuva intensa, bem cedo da manhã. Acompanhamos a aflição do motorista, um professor de matemática envolvido em seus próprios conflitos pessoais. Esses conflitos reforçam a a sua sensação de culpa pelo atropelamento: ele fugiu sem prestar socorro. A partir daí (e também antes e depois desse fato, porque a narrativa não é cronologicamente linear, pelo menos não sempre), vemos um conjunto de existências que se (re)cruzam e se (re)ligam a partir desse acidente.

Falar sobre o acaso da vida, sobre as ligações que temos com estranhos sem sequer desconfiar, seria um clichê. Mas A parede no escuro não vai por esse caminho. Tudo ali é apenas sugerido. É um cruzamento que não chega a acontecer, talvez nem mesmo exista. Ficam no ar hipóteses incestuosas, sugestões de traição, paternidades não-confirmadas, rancores antigos que quase explodem mas que no fim permanecem onde sempre estiveram, escondidos, como ratos no escuro. No meu ver, Altair Martins escreve sobre vidas solapadas de pessoas que fazem esforços enormes para não exporem suas fragilidades. Pessoas que escondem querendo calar o passado. Mas o problema escondido aparece ali mesmo, no presente, manifesto em maior intensidade justamente em função da tentativa de acobertamento.

O que mais me impressiona na narrativa é o fato de ela ser quase totalmente composta de monólogos interiores. O leitor é como um deus que tem acesso aos diferentes pontos de vista sobre um mesmo assunto, uma mesma pessoa, um mesmo fato. O leitor tem essa visão privilegiada que os próprios personagens não tem, tão embebidos que estão em sua visão parcial de mundo e em sua tentativa de omitir e calar. Assim vejo o significado do título do livro: estamos todos no escuro, todos na mesma situação de não enxergar, e uma parede invisível nos impede de nos comunicarmos verdadeiramente, mesmo com as pessoas mais próximas. Trata-se de uma questão existencial, do modo como se configura a vida: ela é inicialmente solitária e só deixará de ser assim se se buscar o outro. E não só. Buscar o outro no seu íntimo. Do contrário, ficamos na aparência, quase sempre, e essa é uma outra forma de solidão. Uma solidão social.

"Aceitando apenas a casca vazia do pão" (p. 253). "Estar no meio de tudo e não ver o essencial" (p. 126). "Eu olhando o pátio, e imediatamente lembrei de coisas de churrasco e carrinhos de rolimã e evitei que o Seu Fojo me viesse sendo um homem bom" (p. 206).

Eis um livro com qualidade narrativa e temática.

Um livro que reverbera no escuro.

Rompendo paredes.

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