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"Para todos os gostos
por Augusto Paim
Em terras onde se respira ares democráticos, tudo é passível de virar uma acalorada discussão, um debate minimamente interessante. Ou quase tudo: não se discute a necessidade de discutir, por exemplo.
Há também outros temas geralmente banidos das rodas dos conversa, como nos lembra o dito popular:
― Gosto não se discute!
Para muita gente, não se discute religião, política, sexo. Afinal, são questões de gostar, não de escolher. Como o estilo da roupa que você usa, o seu corte de cabelo, a sua igreja, o time que você torce, as suas preferências alimentares. Gosto não se discute porque, se não é sempre inato, é muitas vezes aprendido nos primeiros anos de vida, nas mais sólidas relações que compõe a estrutura familiar de cada indivíduo, ou por força de experiências muito particulares. O gosto pode mudar com o tempo, é claro, pode amadurecer, aperfeiçoar-se, mas a base dele está aquém das coisas que dependem de escolhas. É, na maioria dos casos, cultural: você não escolhe o gosto, ele é que escolhe você.
Um primeiro significado da palavra “gosto“ diz respeito especificamente a sabor, e quer marca mais característica de uma cultura do que a culinária típica da região? Quem compreende a necessidade do gaúcho pelo chimarrão, bebida de gosto amargo? Ou o baiano e seu apimentado acarajé? A cultura regional é um conjunto de gostos compartilhados, diria-se mesmo “ensinados“.
Por serem redutos de preservação – e transformação, pois tudo se transforma – de todos esses gostos, os mercados públicos têm muito o que dizer.
O gosto arquitetônico
Viesse uma enchente e mergulhasse sua cidade na água, um único prédio restasse para garantir a preservação da História e das histórias (a sabedoria popular, os causos), qual prédio seria? Algum museu? A prefeitura?
O mercado público! Afinal, tudo ali se encontra e ali todos se encontram. A variedade de produtos expostos nas barraquinhas é a marca gastrônomica da cidade. Os sotaques que se escutam nos corredores e os rostos das pessoas são o retrato vivo da miscigenação. O próprio prédio é um registro das transformações históricas.
Talvez por isso os mercados públicos sejam à prova de enchente. A quem interessar, vale fazer uma pesquisa sobre essa estranha coincidência unindo mercados públicos de diferentes partes do Brasil. Como o de Porto Alegre, cuja resistência à enchente de 1941 mereceu até uma placa na entrada da Ala Sul. Outra coincidência: boa parte dos edifícios têm estilo arquitetônico “eclético“, uma marca da cultura brasileira como um todo, que não se identifica nunca com uma coisa só. Voltando ao exemplo de Porto Alegre: quando o mercado público foi inaugurado, em 1869, tinha estilo neoclássico. Era composto por um único andar e havia sido construido no porto, entre duas docas, onde atracavam embarcações tranzendo peixes e mercadorias. Hoje essas docas deram lugar à prefeitura e a um terminal de ônibus, construídos sobre aterros. Em 1912, após um incêndio que quase acabou com tudo, foi construído o segundo andar, e hoje o prédio tem até escada rolante. Assim como outros mercados públicos, o de Porto Alegre traz, em suas entranhas, a memória de outras épocas, de diferentes momentos e estilos, e mantêm-se aberto ao presente e ao futuro.
O gosto da diversidade
Comida tem gosto e tem cheiro, e nesse sentido os mercados públicos são pratos cheios. No de Florianópolis, a peixaria e a brisa à beira-mar dão um aroma todo especial. Há opções para todos os gostos: caranguejo, anchova, tainha, pirão; chope gelado, caldo de cana; bolinho de bacalhau, omelete de camarão; e sucos de uma variedade imensa de frutas.
Entrar no mercado, em Florianópolis ou em qualquer lugar do Brasil, é mergulhar na diversidade.
O Bazar Mansur, loja inaugurada em 1947, é fruto da imigração libanesa na ilha, numa época em que ainda não se falava em globalização. E o mercado hoje tem comida italiana e culinária oriental. E tudo que um turista espera encontrar em Florianópolis.
Em São Paulo, tem o famoso pão com mortadela. No Mercado Modelo, em Salvador, tem tapioca. Em Aracaju, carne de bode ou até mesmo de caranguejo – servida numa tigela de barro, pronta para comer, ou com um martelinho de madeira para que você mesmo possa extrair a carne.
Em tempos em que os alimentos orgânicos ganham importância, os mercados públicos permanecem comercializando produtos de origem. Com isso, preserva-se o processo inteiro, a cadeia de produção com sua história e características, não só o resultado. E preserva-se porque é artesanal, é comércio e cultura ao mesmo tempo, sem estar atrelado a nenhuma moda.
Não importa onde se esteja, o mercado público de qualquer cidade mostra sempre essa mistura do mundial com o regional, do preservado com o novo.
O gosto das histórias
Mercados públicos são ambientes de efervescência humana, cultura viva. Só em Porto Alegre, são 120 mil visitantes por dia. Pessoas que vêm e vão, que passam, mas que também interagem com o local, contam, escutam e vivem histórias.
Na capital gaúcha, eram frequentadores do mercado público o poeta Mário Quintana e o músico Lupicínio Rodrigues, esse último famoso pelas batucadas na caixinha de fósforo e pelo papel que pedia emprestado no Bar Naval para escrever as letras de suas músicas.
Em Florianópolis, tem a história de um gato que sobreviveu a um incêndio escondendo-se dentro de um freezer. Em Porto Alegre, um homem acordou do coma e a primeira coisa que perguntou foi: “a banca 40 ainda existe?“
Os mercados públicos são legados de histórias, e também da própria História. O de Florianópolis, por exemplo, teve sua localização determinada numa disputa entre dois grupos políticos, no início do século XIX. Na última reforma do Mercado Público de Porto Alegre, as escavações permitiram a descoberta de uma câmara escondida: acredita-se que poderia ser o início de um antigo túnel ligado à prefeitura, servindo como rota de fugas políticas, ou também um depósito de escravos.
Os mercados públicos comercializam mais que produtos, comercializam bens culturais, que, em certa medida, são bens duráveis, mesmo que em constante mutação. E a preservação nesses lugares é espontânea: o que fica é porque tem que ficar, porque resiste em meio ao dinamismo e à novidade.
Mercados públicos são fortalezas de portões abertos aos povos, com opções para todos os gostos. Por preservarem, merecem também ser preservados.
E isso também é indiscutível."
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