Um dos problemas apontados por Twain como dos piores enfrentados por estudantes de alemão é a especificidade das palavras. Podemos usar um exemplo contemporâneo e largamente acessível para ilustrar essa dificuldade: o livro O leitor, de Bernard Schlink. A obra ficou famosa depois que sua versão cinematográfica rendeu o Oscar de melhor atriz a Kate Winslet (o filme foi indicado em outras quatro categorias). O título original é Der Vorleser. Em alemão, Leser é leitor, e a adição do prefixo Vor acrescenta um sentido mais preciso. Vorleser é o leitor que lê, em voz alta, para alguém. Na história de Shlink, o protagonista é um adolescente que inicia sua vida sexual com uma mulher mais velha, que lhe pede para ler livros em voz alta. Há aí o compartilhamento de duas intimidades: a da leitura e a do sexo. Nesse sentido, Vorleser é uma palavra que traz uma nuance de significado que o título em inglês (The reader) e em português não trazem.
O idioma alemão contém muitos casos como esse, casos que assustam os alunos. No entanto, neste final de semana fui surpreendido por um exemplo oposto, e por isso mesmo raro. Refiro-me a uma palavra que designa ao mesmo tempo coisas diferentes. Foi o que constatei ao ler o texto O narrador, de Walter Benjamin. Já no início da leitura, soou estranho o uso dado por Benjamin à palavra narrador. Cotejei com o original: Der Erzähler. De fato, essa palavra designa o que em português chamamos de narrador, ou seja, uma figura criada pelo texto e que só existe no texto; aquela voz que narra a história e que determina o distanciamento com que acompanharemos os fatos relatados (geralmente falamos em narrador em primeira ou terceira pessoa, em narrador autodiegético, homodiegético ou heterodiegético). Acontece que o infinitivo erzählen é também bastante usado no dia-a-dia como “contar” (to tell). Alguém pode dizer: ich erzähle dir etwas, ou seja, “eu vou te contar algo”. Nesse caso, der Erzähler é a pessoa de carne e osso que conta algo para alguém, e não a figura do narrador. Para não restar dúvidas, perguntei a alguém cujo idioma materno é o alemão: “como se diz ‘contador de histórias’?”. Resposta: der Erzähler.
A leitura do texto de Benjamin deixa claro. Ele se refere aí a um contador de histórias, à função de se contar histórias, e não ao narrador dos textos. Tanto que Nicolai Leskow é chamado de “narrador” na versão em português. E é um consenso da teoria literária que narrador e autor (e mesmo autor e escritor) não se confundem.
O idioma alemão é bastante usado na filosofia e nos estudos literários. Por isso é importante ter cuidado. Um prefixo ou uma declinação pode mudar tudo. Ou, no caso do texto de Benjamin, a ausência de distinção pode transformar um texto gostoso de ler em mais um exemplo do terrível idioma alemão.
Links:
The Awful German Language (das páginas 9 a 33)
O leitor (trailer oficial)
Der Erzähler (original em alemão)
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