quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Um mercado de Norte a Sul

Como prometido ontem, publico aqui a reportagem sobre o Mercado Público de Florianópolis:

"Um mercado de norte a sul
Os comerciantes do Mercado Público de Florianópolis ficaram alvoroçados ao ver o automóvel Gordini passando, aparentemente sem motorista. Dentro, na verdade, estava o jovem Zezinho, agachado. Zezinho vinha da Praia do Vai Quem Quer. Como em seus primeiros anos de vida fora acometido de paralisia infantil e, naquela época, não havia carros adaptados, ele teve que ser criativo: cortou um taco de sinuca e usou como sapata, amarrando à perna esquerda. Só assim podia freiar.

Acontece que naquele dia a sapata escapou, e o único jeito de parar o carro era usando as mãos. Para alcançar o pedal, ele se abaixou. Nesse momento, o carro passava bem em frente ao Mercado Público. Os comerciantes não haviam visto a cena anterior e começaram a gritar:

- Viste lá? Tem um carro andando sozinho!

Como não parar?
Talvez já tenha acontecido com você, caso seja uma das 240 mil pessoas que circulam diariamente pelo espaço que engloba o terminal de ônibus, o camelódromo de Florianópolis, o Mercado Público, o prédio da Alfândega e as pequenas feiras ao redor. Como não parar no Mercado? Como resistir ao convite do sujeito sentado na esquina da rua Paulo Fontes, há horas bebendo chope no Bar do Alvin, e que pergunta aos conhecidos que avista:

- Tás indo pra onde?

Você pode responder que marcou de encontrar com alguém. E marcou mesmo. Mas é difícil resistir. Dali meia hora, a mulher e a filha pequena encontrarão você por acaso. Você estará bebendo seu chope, esquecido do tempo, curtindo a brisa, sentindo o cheiro de mar e saboreando um omelete de camarão, bolinho de bacalhau, casquinha de siri ou isca de peixe. É gostoso ficar ali, observando o movimento dos pedestres. Uma gaivota solitária quase enlouquece rodeando as caixas de peixe fresco recém chegadas na Ala Sul. A ave conta com a piedade dos funcionários da peixaria Silva, que lhe dão pequenas cortesias.

Edemésio Biomiro da Silva, 58 anos, 40 deles vividos no Mercado, é o dono da Peixaria Silva. Ele mostra no chão até onde a água vinha, antes da construção do aterro onde está o terminal de ônibus, ao sul do Mercado Público.

Se você entrar na Ala Sul, vai encontrar as peixarias, que vendem enxova, tainha, curvina, gordinho, camarão nativo, ostra e berbigão. Também há uma loja vendendo caldo de cana (o copo gigante custa R$ 2,00). É possível comprar ainda produtos de pesca e artesenato ou mesmo comer no badalado Box 32, reduto das celebridades que visitam a ilha (segundo o proprietário Roberto Barreiros, 53 anos, 25 de Mercado, o box é considerado uma das três principais atrações turísticas do estado, ao lado do Costão do Santinho e do Beto Carrero World). Pode comprar erva-mate, porque há muitos gaúchos em Santa Catarina. Ou pode tomar um chope no Bar do Alvin, que tem uma história curiosa. O dono Alvin Nelson Fernandes da Luz, 67 anos, há 48 no Mercado, herdou o ponto do pai. No início, o lugar era uma fiambreria. Como era frequente o pedido dos fregueses para que vendesse cerveja e se transformasse num local para o "happy hour", acabou virando um bar. Ou um "boteco melhorado", como descreve Alvin.

Separando a Ala Sul da Ala Norte há um vão central, um pátio que é quase uma rua que atravessa o Mercado. E, pelo menos no nome, é uma rua mesmo. A Rua Francisco Tolentino abriga desde restaurantes tradicionais - no Bar Goiano, fundado em 1963, é possível comer sequência de camarão, tainha grelhada, peixe frito e peixe com pirão - a lojas de tecidos e de panelas. Esse também é um espaço de convivência. Sábados à tarde há música ao vivo e, antigamente, havia até mesmo artesãs fazendo rendas de bilro. Hoje há apenas duas senhoras fazendo essa arte tradicional da cidade, apenas em dias de semana, no prédio da Alfândega, atrás do Mercado.

A Ala Norte, que é voltada para a Rua Conselheiro Mafra, abriga primordialmente lojas de sapatos e de confecções e aviamentos, além de alguns bares.

Os pólos de uma cidade subtropical
Florianópolis é uma cidade feita de opostos. O principal deles: ter nascido no continente ou, ao contrário, ser um Manézinho da Ilha.

O Mercado Público também é feito de oposições, como a separação em duas alas: a Norte e ao Sul. E a própria história do Mercado começou com dois lados em disputa. Ou melhor, a pré-história do Mercado começou assim. Pois foi por causa de uma discussão sobre onde a primeira edificação seria construída que surgiram os dois primeiros partidos políticos do estado. No final do século 18 e início do século 19, o comércio na Praça XV era feito por meio de barraquinhas e esteiras esticadas no chão, tudo em péssimas condições sanitárias. A sociedade se dividiu para decidir que solução tomar. De um lado, os barraquistas, ou seja, os comerciários, também conhecidos como cristãos, e que queriam continuar comercializando no local; do outro, os opositores, os judeus, que queriam que as barracas fossem transferidas de lugar. Venceram os barraquistas.

Esse antecessor do atual Mercado Público foi erguido em 1851, mas foi demolido quatro décadas depois. No seu lugar, foi erguido a Ala Norte do prédio atual, no ano de 1898. Apenas em 1931 foi construída a Ala Sul.

Hoje o prédio tem características ecléticas, com toques de art-decô. Foi construído um vão ligando as duas alas. Também há quatro torreões nos cantos. O mar, que antes fazia da Ala Norte uma praia e, com o novo aterro, passou a encostar na Ala Sul, hoje ficou ainda mais distante. Pois um novo aterro não apenas distanciou o mar, mas a construção do terminal de ônibus na década de 1970 tirou também a vista do litoral.

Em 1984, tanto o prédio do Mercado quanto o da Alfândega foram tombados por decreto municipal.

Em 2005, um incêndio destruiu toda a Ala Norte, que foi posteriormente reconstruída. Ninguém ficou ferido. Nem mesmo um certo gato, que se salvou do fogo escondendo-se dentro de um freezer no Bar Goiano.

Trabalhando em casa
Charlon Ferreira, 51 anos, 41 de Mercado, é o proprietário do bar Goiano. Charlon é filho de Saint-Clair Inácio Ferreira, o tal "Goiano". Quando tinha 20 e poucos anos, Saint-Clair já era um profissonal de confeitaria e trabalhava num estabelecimento do ramo em Florianópolis. Havia começado despretensiosamente, mas logo chegou ao status de sócio. Ambicioso, ele quis ter o próprio negócio. Os poucos recursos, porém, só permitiram a compra de um ponto no Mercado Público, na época frequentado por pessoas de baixa renda. Ali começou o Bar Goiano, em 1961, que veio a se tornar uma tradição da cidade.

O filho Charlon entrou cedo para a história do bar. O pai às vezes ia caçar e o menino ficava trabalhando no caixa, com o auxílio de outros funcionários. Em 1979, Saint-Clair teve problema de saúde e o filho, agora adulto, assumiu os negócios. Hoje é Filippe, 26 anos, filho de Charlon e neto de Saint-Clarir, quem se prepara para assumir os negócios da família.

Charlon lembra de muitas histórias. Foi ele quem trancou sem querer o gato no freezer, ao entrar apressado na construção em chamas. Viu a porta do freezer aberta e, sem saber que o gato se escondera lá, fechou. Dias depois, quando os bombeiros autorizaram a entrada no prédio, foi Charlon quem abriu o freezer e deu de cara com o gato. Chamou os jornalistas que estavam por ali para fotografar a liberação do prédio pelos bombeiros após o incêndio. No dia seguinte, a matéria saiu nos jornais.

Há outras histórias. Em 1961, o cantor João Gilberto esteve em Florianópolis para fazer um show. Charlon conta que ele interrompeu a apresentação, porque o público não ficava quieto. Irritado, saiu de lá e, após perambular pela cidade, foi parar no Bar Goiano, às 6 da manhã. Pegou o violão e começou a tocar. Tanto que esqueceu de ir embora; só se deu conta às 11 da manhã.

Outra história que Charlon lembra tem ar de comédia. Diz que certa feita o Mercado tinha um administrador muito brabo, rígido, que ficava furioso por pouca coisa. O escritório da administração ficava na frente do Mercado. Nos fundos, aportou um homem pretendendo vender uma vaca ao administrador. Os funcionários do Mercado, querendo fazer troça, recomendaram ao homem que, em vez de deixar a vaca presa nos fundos, que ele a levasse junto com ele pelo vão central até chegar ao escritório. Assim ele fez. No caminho, alguns funcionários começaram a jogar papéis e fazer barulho, provocando o bicho. A vaca ficou nervosa. O resultado foi um rastro de sujeira, por todo o vão central, até o escritório da administração. O episódio rendeu muitas gargalhadas, além de algumas demissões.

Quase em frente ao Goiano, provavelmente por onde a vaca deve ter passado, um estabelecimento ostenta a seguinta placa: "Bazar Mansur - alumínio, inox, ferro, esmaltados - desde 1947". Essa loja de panelas é a locatária mais antiga do Mercado Público. No balcão, quem atende hoje é Marlene Mansur de Moraes, de 70 anos. Cirurgiã-dentista aposentada, ela assumiu o negócio há dez anos, após a morte do pai, Gedeão Mansur, que trabalhou 53 anos no Mercado.

A família Mansur chegou ao Brasil em 1905, vindos do Líbano. Lá eles trabalhavam com plantação de oliva e rebanho. Gedeão, que nasceu já no Brasil, começou trabalhando como mascate, vendendo tecidos e armarinhos para lojas. Em 1947, comprou o ponto no Mercado Público, usando bônus de guerra para saldar parte do pagamento. A loja Mansur vendia inicialmente armarinhos e sedas. Quando chovia, porém, as gotas caiam do teto e estragavam os tecidos. Foi por isso que Gedeão começou a vender louças. Ele logo viu, porém, que não levava jeito para a coisa. Então, numa viagem a São Paulo, conheceu o alumínio, um material novo, que teve sucesso imediato.

O Bar Goiano e a Loja Mansur são exemplos de um fenômeno comum no Mercado Público de Florianópolis. Os negócios tendem a atravessar gerações, permanecendo nas mãos da mesma família. Um caso curioso é o da Calçados Leal, uma sapataria que tem duas loja na Ala Norte. O ponto é comandado por Leoberto Roberto, caçula de uma família de 17 filhos. Roberto João Leal, o pai da família, antigamente tinha um tabuleiro de frutas no Mercado.

Outro filho da família Leal chama-se José Roberto. José se criou por lá, desde os 9 anos. No início, os irmãos o levavam de carro de mão. O menino cresceu, aprendeu a se virar sozinho. Quando adulto, entrou para o Mercado como camelô, comercializando naftalina e pentes flamengo e cata-piolho. Acompanhou portanto de perto as discussões da década de 1960 - uma espécie de flash back da história anterior do Mercado - sobre o que fazer com os novos camelôs que se alojavam no entorno. Mesmo após o período de ausência, em que foi trabalhar num banco, José voltou ao principal cenário da sua vida com toda força: ele se tornou administrador do camelódromo. Uma de suas maiores lutas foi em prol da acessibilidade dos portadores de necessidades especiais ao Mercado. Atualmente, José Roberto Leal administra o Mercado Público de Florianópolis.

Olhando para frente e vendo o passado
José Roberto Leal, hoje com 58 anos, ri um bom bocado ao lembrar a história do carro sem motorista. E são realmente muitas histórias para recordar.

- Eu via chegar a lancha aqui onde eu estou sentado - conta Zezinho, sentado na sua cadeira na sala da Administração do Mercado. Ele lembra dos tempos em que a água invadia o local onde hoje se encontra o camelódromo.

Zezinho de alguma forma conseguiu parar o carro naquele dia, com o auxílio das mãos. Se alguém achava que não havia ninguém lá dentro, se enganou. Zezinho estava lá e está aí até hoje. A história dele é como a história do Mercado Público: não se fez senão enfrentando muitas dificuldades e obstáculos. E boas lembranças.

Um comentário:

Leonardo disse...

Tche, não sabia que tinha ficado contigo esse freela!
Massa mesmo. O projeto é bem interessante. abraço!