Evidentemente, gosto mais da primeira versão. Ali, forma e conteúdo estão inseparáveis. Chama-se Cinco dias em Assunção. A escolha do título tem um propósito definido e traz em si um quê de autocrítica: no meu modo de ver, é impossível ficar apenas cinco dias numa capital e, com isso, conseguir dominar a cultura desse país a ponto de escrever sobre ela de forma onisciente.
Claro que o jornalismo tem seus métodos para fazer as coisas acontecerem. O que estou dizendo é outra coisa: por mais que a minha apuração lá tenha sido extenuante, eu não acho justo - com o Paraguai, com as pessoas que entrevistei e com a experiência que tive - condensar tudo isso em uma reportagem convencional que assuma ares totalizantes. Seria possível para um jornalista estrangeiro que ficasse cinco dias em Brasília falar sobre a cultura brasileira como um todo? Ou, numa esfera menor: cinco dias em Porto Alegre para falar de toda a cultura gaúcha? Eu acredito que não. De tal forma que Cinco dias em Assunção é, para mim, também uma afirmação de valores, um afirmação política.
Como a reportagem ficou muito grande - e por isso não poderia ser veiculada numa revista impressa -, eu vou publicá-la aqui em partes, durante o feriadão de Páscoa. Sem mais delongas, segue abaixo então o relato do primeiro e do segundo dia.
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Cinco dias em Assunção
A cultura e a arte paraguaias são algo que o mundo inteiro desconhece, inclusive o Brasil, inclusive o próprio Paraguai. Bastam alguns dias na capital para se mudar isso.
por Augusto Paim
O avião vindo de Curitiba pousa em uma Assunção de ruas desertas e abafadas, trânsito sem muitas regras, calçadas esburacadas e plantas que crescem exuberantes nas sacadas de casarões abandonados. O ônibus que conduz do aeroporto até o centro é um Mercedes Benz 608, fabricado entre os anos 1970 e 1980. O motorista recolhe o valor da passagem – 2.300 guaranis, equivalente a menos de R$ 1,00 –, deposita-o em um moedeiro velho de madeira e confere o troco enquanto ziguezagueia entre os carros. A porta dianteira do veículo permanece aberta.
Há pouca gente nas ruas. Assunção é “uma cidade de muros internos, introspectiva e calada, onde a arte sempre é under”, descreveu em um texto o jornalista Sergio Ferreira, editor do caderno de artes e espetáculos do Diário ABC, maior jornal do país. Com isso Ferreira quer dizer que o paraguaio prefere pequenas reuniões em casa, com amigos e familiares, do que eventos em público. Segundo o jornalista, isso se justifica pelo passado recente de convivência com a ditadura, quando não se podia ter uma conversa franca fora de quatro paredes. Há também a vantagem do ar condicionado, pois o calor de Assunção deixa os corpos suados em instantes.
Ainda assim, nos shopping centers, é possível encontrar grandes grupos reunidos a torcer por Certo Porteño ou Olimpia, times de futebol que, quando jogam entre si, fazem o grande clássico paraguaio. Mas um shopping em Assunção é similar a qualquer outro shopping de qualquer cidade do mundo.
Hoje é domingo, 20 de fevereiro de 2011. Para começar a identificar o rosto da cultura paraguaia, é necessário esperar até segunda-feira.
Lunes, 21 de Febrero de 2011
Meio-dia. Na esquina da rua Yegros com a Dr. Eligio Ayala, a fachada de um prédio antigo, do Ministério de Educação e Cultura, está pintada num laranja desgastado que deixa entrever o reboco e os tijolos. Lá dentro, uma escada de degraus largos conduz até uma porta fechada, de onde escapam sons de instrumentos musicais. Entra-se. Sobre um carpete bordô cheio de rasgos, os músicos da Orquestra Sinfônica Nacional ensaiam.
A maioria deles é jovem, algo incomum para uma orquestra de nível nacional. Juan Carlos dos Santos, maestro e diretor titular da instituição, explica que essa é uma característica do povo paraguaio. “70% da população tem menos de 30 anos de idade”, diz ele. Os 75 músicos da orquestra são profissionais: têm salário e recebem multa se chegarem atrasados nos ensaios.
A Orquestra Sinfônica Nacional do Paraguai existe há pouco tempo, desde 2008, e é baseada em outra orquestra que havia sido criada em 2004. Em todo o país, há apenas duas faculdades de licenciaturas em música. Para estimular a aparição de novos talentos, o governo pede peças específicas para jovens compositores locais. Um deles é Luis Szarán, por sua vez diretor do projeto Sonidos de La Tierra, que tem aberto conservatórios e orquestras municipais em todo o país. Em poucos anos, são milhares de jovens atingidos, e os primeiros frutos começam a aparecer. “O projeto está sendo imitado em países como Argentina, Uruguai e Índia”, conta Santos. O sucesso se deve a incentivos públicos e privados, além de ações voluntárias internacionais. É o caso da sul-coreana Angela Jung-Eun, condinome Chae, 29 anos, que está no Paraguai há um ano e sete meses ensinando música clássica para crianças e professores.
Agora são 15h. Para enganar o estômago, uma chipa vem bem a calhar. Trata-se de um salgado típico do Paraguai, cuja massa é feita com amido, milho, ovos, leite e queijo. Tem com recheio de queijo, frango ou carne. Custa 3.500 guaranis cada.
16h, calor intenso. Na redação do Diário ABC, Sérgio Ferreira mostra um exemplar da revista espanhola Zona de Obras. Cada edição da revista traz um grande dossiê sobre a cena cultural de cidades latino-americanas – Assunção foi a escolhida para o número 55. No material produzido por Ferreira, algumas personalidades contemporâneas merecem destaque: como o jovem escritor Fredi Casco, descrito como “um dos nomes mais prolíficos da cena de Assunção”, autor do livro Cowboy brasiguayo e diretor da editora Ediciones de La Ura; o grupo de metal alternativo Flou; e o incipiente, porém promissor cinema paraguaio, que recebeu premiação em Cannes, em 2006, com Hamaca paraguaya, da diretora Paz Encina. A edição apresenta ainda um glossário com cem itens de importância da história, do turismo e da cultura do país. Está registrado ali, por exemplo: o Portuñol Selvagem, coletivo de autores que se propõe a escrever misturando espanhol, português e guarani; a arpa paraguaia, instrumento típico do Paraguai, com vários artistas de destaque, inclusive no exterior; e o movimento Nuevo Cancionero, que surgiu no começo dos anos 1970 em oposição à ditadura.
Interrogado sobre o porquê de a arte paraguaia não ser conhecida fora do país, Ferreira credita o problema tanto a questões políticas – “a ditadura limitou o movimento cultural” – quanto históricas – “é o preço da guerra do Paraguai” [no conflito, ocorrido entre 1865 e 1870, Brasil, Argentina e Uruguai formaram uma tríplice aliança que derrotou o Paraguai, na época uma potência regional]. Para Ferreira, “a democracia é muito nova”. A ditadura findou em 1989.
Fim do dia. Uma visita a uma livraria pode ser um bom indicador da situação atual das letras no país. A seção de literatura paraguaia ocupa um pequeno espaço. Todas as obras, independentemente da importância do autor, carecem de um acabamento gráfico profissional, o que torna difícil identificar quem são os principais escritores. Só depois de se visitar outras livrarias, ler uma porção de orelhas de livros e se conversar com muita gente, fica-se sabendo que Augusto Roa Bastos é o grande escritor paraguaio. Seguem-se Helio Vera, Elvio Romero, Moncho Azuaga, Gabriel Casaccia e Rubén Bareiro Saguier. A maior parte dos livros é em espanhol, mas a literatura em guarani têm ganhado destaque, inclusive com obras sobre temas contemporâneos. O mercado editorial, no entanto, ainda precisa crescer: as obras que chamam atenção nas livrarias são de outros países de língua espanhola, onde há editoras de grande porte.
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