O senhor Sá-Carneiro
Livro recém-lançado em Portugal revela detalhes inusitados da vida do escritor.
Da Redação
Lisboa, maio de 2011. Acaba de sair a biografia não-autorizada de Mário de Sá-Carneiro, escrita pelo jornalista Guilherme de Santa-Rita Neto, autodenominado Santa-Rita Repórter. Para os desavisados: o autor de Contando sá-carneirinhos: a história do menino que pôs a si mesmo para dormir é neto de Santa-Rita Pintor, ícone do movimento futurista em Portugal. Santa-Rita Pintor e Sá-Carneiro eram “inimigos íntimos”, como o próprio Sá-Carneiro descreveu nas suas famosas cartas para Fernando Pessoa. Com isso ele queria dizer que havia uma ligação especial entre os dois, que não era nem amizade nem mero desprezo. De fato, Sá-Carneiro reclama de Santa-Rita Pintor em muitas cartas, mas não deixa também de conviver com ele. Havia um algo mais nessa relação.
Santa-Rita Repórter não admite ter escrito a biografia apenas como vingança, mas afirma: “Sá-Carneiro pintou para o mundo uma imagem do meu avô que não é verdadeira.” E completa: “Nesse sentido, Sá-Carneiro é pior pintor que meu avô.” No livro, Santa-Rita Repórter descreve um Sá-Carneiro desconhecido do público familiarizado com sua obra – inclusive em tópicos deveras polêmicos. “Tudo que está ali é verdade e demandou extensa pesquisa”, garante o jornalista.
A seguir, um resumo do principal conteúdo da obra.
Sabe-se que Sá-Carneiro passou por grandes dificuldades financeiras, o que inclusive o teria precipitado para o precoce suicídio em 26 de abril de 1916. O que não se sabe é de que forma ele buscava conseguir dinheiro. Segundo consta no livro de Santa-Rita Repórter, no início de 1914 Sá-Carneiro chegou a pedir dinheiro aos Correios de Portugal. “O bisneto de um funcionário me mostrou uma carta enviada por Sá-Carneiro para o gerente de uma agência em Lisboa”, conta o autor. Na carta, Sá-Carneiro teria dito que estava escrevendo um livro de cartas e que para isso pedia auxílio financeiro da instituição, a título de patrocínio. Foi nessa época que Sá-Carneiro escreveu a Fernando Pessoa comentando a possibilidade de a sua correspondência vir a lume décadas depois.
O patrocínio não foi aprovado. Coincidência ou não, a partir daí Sá-Carneiro passa a reclamar constantemente nas cartas do atraso no serviço dos Correios.
Sá-Carneiro fez análise! Sim. Ou pelo menos é o que diz o autor da biografia. Segundo Santa-Rita Repórter, no quarto de hotel em que Sá-Carneiro se suicidou foi encontrada uma agenda na qual aparecem marcações semanais sob o signo “sessão hoje – não esqueça!!!”. Surpreendentemente, essas marcações se repetem inúmeras vezes, inclusive no mesmo dia. A recém-publicada biografia de Sá-Carneiro traz um suposto fac-símile de algumas páginas da agenda, onde aparecem esses lembretes junto a uma série de setas e rabiscos. Ali se pode constatar, por exemplo, a incidência intermitente de frases como: “meu pai é meu herói”, “falar sobre o quanto eu gosto da mulher do meu pai”, “hoje acordei futurista, mas vou dormir saudosista” e “Fernando Pessoa não responde minhas cartas: não quero mais ser amigo dele”.
E quem seria o analista? Isso não se sabe, pois não há a citação de nenhum nome, a não ser o das pessoas que aparecem na correspondência. Santa-Rita Repórter aventa a possibilidade de que Sá-Carneiro fazia análise em si mesmo, escrevendo os conteúdos terapêuticos na agenda. Segunda essa teoria, Sá-Carneiro anotava o horário por mero deboche. No entanto, no criado-mudo do quarto do hotel foram encontrados alguns frascos de anti-ansiolítico. O que levanta a questão: como ele poderia ter conseguido o remédio sem receita?
Os hábitos esportivos do escritor. Segundo Santa-Rita Repórter, Sá-Carneiro caminhava diariamente, duas vezes na parte da manhã, e outras três à tarde. A informação não é confirmada; antes foi deduzida por uma história que circula até hoje na agência dos Correios em Paris na qual Sá-Carneiro buscava a correspondência. Fala-se por lá que, entre 1912 e 1916, em vários momentos do dia os funcionários viam Sá-Carneiro passando diante da porta. Depois de certo tempo, chegou-se à absurda conclusão de que Sá-Carneiro fazia suas caminhadas andando em volta da quadra da agência. “Quando chegava o carro do serviço postal, ele parava ao lado dos carregadores para fumar um cigarro e espiar os pacotes”, diz Santa-Rita Repórter. Ainda hoje, na mesma agência em Paris, há quem diga que o fantasma de Sá-Carneiro aparece à noite para bagunçar as cartas.
Um dos maiores mistérios envolvendo a morte de Sá-Carneiro diz respeito à identidade da mulher com quem ele se relacionava aos 25 anos de idade, nos momentos finais da sua vida. Em carta de abril de 1916, Sá-Carneiro diz que essa mulher é uma personagem saída da sua obra literária para a realidade. Sinal de que seria uma mulher imaginária? Não é o que diz Santa-Rita Repórter. Segundo ele, uma carta apócrifa para o amigo José Araújo deixa claro que se trata de uma mulher de carne e osso. Ou melhor: plástico e ar. E orifícios.
O grande mérito de Santa-Rita Repórter é não se ater à pesquisa histórica. Na biografia, ele se preocupou também em entrevistar especialistas de diferentes ramos de conhecimento para tentar descobrir, apenas através da análise da correspondência com Fernando Pessoa, porque Sá-Carneiro se matou. Um especialista na rede hoteleira de Paris afirma que o caso de Sá-Carneiro não era exceção, e que qualquer pessoa que se hospedasse no Hôtel de Nice em 1916 corria risco de suicídio. “Até hoje é um hotel que eu particularmente não recomendo”, diz.
Já um especialista em informática trouxe um motivo inusitado: “o que matou o Sá-Carneiro foi o email!” Ele acredita que Sá-Carneiro teve uma epifania naquele quarto de hotel, quando constatou que no futuro as mensagens seriam instantâneas, acabando com os longos períodos de espera. Mas não seria essa uma invenção boa para alguém tão ansioso? Na verdade, não. Para responder melhor, o especialista lembra que Sá-Carneiro dizia ter saudade do que ele ainda iria viver. “Quando ele pensou na ideia do email, era como se ele já tivesse experienciado a era da internet”, diz. Ele acredita que, na cabeça do Sá-Carneiro, a era da internet acabaria com seu maior prazer – a espera. “Se ele não fosse tão apressado, talvez pudesse prever que a maior parte dos servidores seria mais lenta do que se imagina”, afirma.
O livro encerra com uma hipótese instigante, talvez a mais controversa de toda a obra. E é baseada no fato de que as cartas de Fernando Pessoa para Sá-Carneiro se perderam, com exceção de meia dúzia. “Sei que esta afirmação pode invalidar todo meu trabalho como biografista, mas há indícios fortes de que Sá-Carneiro fosse apenas outro heterônimo de Fernando Pessoa”, diz Santa-Rita Repórter, deixando no ar o questionamento sobre a identidade do homem encontrado morto no hotel.
RESUMO
TÍTULO: Contando Sá-Carneirinhos - a história do menino que pôs a si mesmo para dormir
AUTOR: Santa-Rita Repórter
EDITORA: Nostalgia Futurista (Lisboa)
NÚMERO DE PÁGINAS: 126 p.
PREÇO: 10 euros.
Confira um trecho da obra:
“Muito já se foi dito sobre a relação entre meu avô e Mário de Sá-Carneiro. Conforme o que se lê na correspondência com Fernando Pessoa, parece haver aí muito ódio, como quando Sá-Carneiro diz que Santa-Rita, como editor, é pior que a morte. Com a intenção de lançar luz sobre a natureza do relacionamento entre os dois, revelo aqui um detalhe que pode vir a embasar futuros estudos. Trata-se do invólucro de uma bala de hortelã, que encontrei no baú de recordações do meu avô. No verso, há os seguintes apontamentos: ‘Finalmente aconteceu!!!’, ‘Ontem à noite, Sá-Carneiro, Café-Restaurant de La Régence’, ‘porém, mau-hálito’ e ‘próxima vez: como abordar o assunto?’”
***
Ps.: aviso importante, importantíssimo, para não haver mal-entendidos. O texto acima foi escrito por mim, Augusto Paim, e É UMA FICÇÃO, em forma de paródia de reportagem. Escrevi-o como exercício para uma reunião do grupo de estudos Leitura e Criação Literária, coordenado pelo professor Paulo Kralik no Mestrado em Teoria da PUCRS. O objetivo era criar uma ficção a partir de um personagem real. A atividade teve como ponto de partida a leitura de O senhor Juarroz, de Gonçalo Tavares.
Um comentário:
Creio que a cada passo em cada esqueina lisboeta, principalmente as que estão perto do Chiado, se nota com clareza um fôlego nessa juventude de repórteres e seus interesses prescrutadores, almejando alvos cada vez mais estéticos e que geram frutos hiper-realistas com a dita ficção. Quanto mais os leio também reconheço a importância da ficção recriar a realidade com o valiosos argumento de que se assim não o fosse o mundo não teria com o que a todos lambuzar!
Postar um comentário